O vídeo da bastante desajeitada e
virulenta reunião ministerial de 22 de abril pode não ter sido a morte esperada
do presidente da República, mas ele tem elementos que podem sim contribuir, em
termos jurídicos, para tirar o sono dele, porque há afirmações ali que se
juntam a outros fatos cujo resultado pode servir para a receita capaz de
complicar a paz dentro do Palácio do Planalto, quanto à denúncia de
interferência política na Polícia Federal.
Na verdade, não há, no vídeo, declaração
flagrante e concretamente do presidente de que interferiria na Polícia Federal,
para desviar a sua missão institucional, fato que levaria à conclusão da
investigação no sentido de denunciá-lo pela prática de crime.
Em circunstâncias normais, o presidente
da República tem prerrogativa para mudar todos os cargos do Executivo, o que
significa dizer que, sob o aspecto jurídico, não faria sentido ele fazer
pressão para trocar o superintendente da Polícia Federal, no Rio de Janeiro,
salvo se houvesse motivação estranha ao interesse público.
A despeito disso, o presidente
construiu história sem pé nem cabeça acerca da referida mudança, sob a
justificativa de que não conseguia fazer trocas “na segurança no Rio”, em
relação à equipe que cuida da sua proteção pessoal, que foi entendida como sendo
com relação à Polícia Federal, mas essa versão não se sustentou, diante de fato
incontestável, segundo o qual, no mês anterior à reunião de 22 de abril,
precisamente em março, a equipe de segurança do presidente, naquele estado,
teve trocas importantes e que não seriam aquelas reclamadas por ele, em que
também não houve qualquer empecilho para tanto.
As mudanças aconteceram
normalmente, na segurança pessoal do presidente, pelo reconhecido mérito da
qualidade do trabalho dela, em que houve premiação do comando, que foi
promovido, fato este que põe por terra a alegada insatisfação por não gostar do
trabalho da equipe e precisar mudar.
Na verdade, a insatisfação tinha
endereço certo, que era exatamente a Superintendência da Polícia Federal, no
Rio de Janeiro, diante da necessidade de se proteger, nas palavras do
presidente, familiares e amigos, que, pelo menos nesse último caso, não tem
direito à proteção pela segurança pessoal, que é feita por corporação diferente
da Polícia Federal.
Consta do vídeo que o presidente
chegou a dizer: "Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não
pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra
brincadeira.".
Ou seja, a investigação precisa
provar ou não se a mudança do superintendente da Polícia Federal, no Rio de
Janeiro, era objetivo do presidente de transformar a corporação em mera
extensão dos interesses políticos ou pessoais dele, com a nomeação de pessoa da
sua confiança.
Ainda cantando vitória, por
entender que o vídeo não tem nada que o incrimine, o presidente do país
mencionou episódio que teria sido desbaratado por amigos policiais, agentes do
país que passam informações para ele, de modo informal, tendo explicado que
essa é a misteriosa “segurança particular” que foi mencionada no vídeo, com
mais eficiência do que a dos órgãos do governo.
A citada situação policial teria
acontecido na casa de um de seus filhos, engendrada por meio de busca judicial,
onde falsas provas teriam sido plantadas no local e o presidente se veria refém
de chantagens.
Diante dessa situação, o
presidente disse que chamou o então ministro da Justiça às falas e pediu que
ele o protegesse, tendo afirmado: “Ele tem o dever de me defender”, a despeito
de a segurança dele seja feita pelo Gabinete de Segurança Institucional.
Não resta a menor dúvida de que o
relato desse episódio evidencia prova indiscutível do desejo de
instrumentalização da Polícia Federal, de maneira indevida, em razão de a
proteção do presidente ser da incumbência do citado gabinete e não do Ministério
da Justiça, onde a PF é subordinada, e esse fato é de grande importância para
as investigações, diante da tentativa de requisição do presidente de segurança
particular, em evidente desvio de finalidade.
Na realidade, o vídeo mostra que
o presidente fervia da cabeça aos pés de raiva e exigia o máximo dos ministros,
em forma de combatividade e por meio de mais ações políticas, sendo que o
ex-ministro da Justiça merecia cuidado especial em fora de irritação.
Fica patente que o presidente
tinha por alvo o ex-ministro da Justiça, quando cobrava de seus assessores mais
preocupações com seus afazeres e com a defesa da imagem dele, ao dizer: “tirem
a cabeça da toca”, para defendê-lo na imprensa, e “Tem que fazer a sua parte!”,
com os olhos voltados para o lado onde estava o então ministro, para quem
também olhava quando avisou que vai intervir em qualquer ministério, se achar
necessário.
Por fim, o presidente se volta
para o ministro da Justiça. no exato instante quando pronuncia a palavra
“intervir” e isso é bem visível.
O conjunto dos demais atos
constantes do vídeo da malsinada reunião diz muito sobre a pobreza e a baixaria
nas falas do presidente brasileiro e de alguns ministros, evidenciando
deplorável e decadente nível de pessoas seletas que estão representando a nação
brasileira, mas nesse ato houve a exposição da solidariedade de autoridades
públicas, em demonstração inequívoca e despudorada de dizer, a um só tempo,
tudo que jamais deveria ter sido sequer pensando, quanto mais dito, em razão da
relevância de seus cargos e em respeito à dignidade dos brasileiros.
O mais grave de todo triste e
deplorável episódio é que a predominância dos palavrões, embalados com ameaças
e insinuações foi a tônica da reunião, com destaque para o cacique-mor, que se
irritava por trás de suas contundentes afirmações e em momento algum se viu,
por parte dele, nenhuma trégua em ponderação e respeito nem mesmo como cidadão,
como mando a liturgia do relevante cargo de príncipe da República.
Em reunião de aproximadamente
duas horas, quase nada se ouviu sobre atos próprios e especiais da governança
e, pior ainda, sobre medidas efetivas pertinentes à gravíssima crise da
pandemia do coronavírus, que teria sido excelente oportunidade para o
presidente se ocupar, de forma prioritária, para levar ao importante encontro
ministerial ideias sobre estudos, estratégias e outros temas inerentes ao
combate a essa praga que mexe e atanaza diretamente a vida dos brasileiros.
Não obstante, o presidente
aproveitou o ensejo para tecer “importantes” considerações sobre a necessidade
de armar os cidadãos, com a preocupação de se evitar o surgimento de ditaduras.
Também, diante da relevância dos
assuntos discutido na reunião, o nobre ministro da Educação houve bem destilar
seu ódio por Brasília, afirmando que aqui é a terra de bandidos e corruptos, e
ainda achou interessante e ideal o momento para dizer a sua vontade de mandar
para a cadeia os “bandidos do STF”, tudo em ambiente onde não faltou quem
pretendesse processar e prender governadores e prefeitos que recomendam o
isolamento social, mostrando, com esse sentimento, desprezo à vida humana,
visto que o confinamento é forma desejável de se evitar contágio dom o
coronavírus.
Enfim, a reunião de abril de
2020, carregada de nuvens cinzentas, como visto, certamente ficará marcada nos
anais da história brasileira como o dia em que os cabeças pensantes da
República aproveitaram-na para demonstrar a parte folclórica da gestão pública,
onde se viu um pouco de muitos palavrões, acusações, ameaças, enquanto a grave
crise da pandemia do coronavírus se alastrava com força e impiedosamente sobre
a população, mas nenhuma medida foi apresentada nem discutida, no encontro,
acerca do seu efetivo combate, o que bem demonstra o completo desinteresse na
solução dessa tragédia por parte das autoridades governamentais.
Brasília, em 23 de maio de 2020
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