segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Imposição de farsa?

 

Por ocasião de visita a Presidente Prudente (SP), no último dia do mês passado, o presidente da República voltou a investir contra o sistema eleitoral brasileiro, ao afirmar que “não aceitará uma farsa".

O presidente brasileiro disse que "Queremos eleições, votar, mas não aceitaremos uma farsa como querem nos impor. O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde. Jamais temerei alguns homens aqui no Brasil que querem impor sua vontade".         

O discurso do presidente do país ocorre dois dias depois do seu duro pronunciamento promovido em ataque contra as urnas eletrônicas e as autoridades da Justiça Eleitoral, em evento que seria, a princípio, para a apresentação de provas sobre as possíveis fraudes causadas na votação brasileira.

Não obstante, ele terminou mostrando só baboseiras colhidas da internet, sem nada aproveitável ao caso, diante da sua inconsistência jurídica, tendo aproveitado o ensejo para confessar que não tinha prova de nada do que vem alegando, tendo apenas contribuído para momento decepcionante e melancólico, ante a relevância do cargo exercido por ele, que tem o dever de somente tratar os assuntos com o extremo da competência, da seriedade e da responsabilidade, porque assim o mandato impõe ao titular do cargo.

Diante disso, aliados do presidente do país avaliam a renovação do discurso nada democrático, tendo por tentativa manter sua base radical mobilizada diante de sucessão de acontecimentos que têm desgastado o governo ou colocado em xeque o discurso com o qual ele se elegeu em 2018, principalmente por fazer contestação sem o menor fundamento.

Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral classificaram, nos bastidores, como "patética" a live do presidente do país, por ele ter apresentado, na transmissão ao vivo, teorias sobre possível vulnerabilidade das urnas que circulam há anos na internet e que elas já foram contestadas e desmentidas anteriormente, em ocasiões oportunas, por quem de direito.

Após as reações negativas geradas pela live, líderes e dirigentes de partidos do Centrão apelaram no sentido de que o presidente do país moderasse o tom em relação à existência de fraude nas urnas eletrônicas e a sua defesa do voto impresso, que ele diz ser "auditável" e "democrático", porque o comportamento dele evidencia forma de radicalismo que deve ser evitável, por não contribuir para o aperfeiçoamento da democracia.

Embora o presidente do país já tivesse se comprometido, até mesmo junto ao novo ministro da Casa Civil, que é forte e importante líder do Centrão, em baixar a fervura da crise, ele, como visto, manteve o mesmo discurso de radicalização, como forma de se colocar mais lenha na fogueira do assunto referente às urnas eletrônicas, para que isso possa se estender por bastante tempo.

Interlocutores disseram, sob condição de anonimato, que o presidente do país não tem condições políticas, neste momento, para abandonar a pauta do voto impresso nem de deixar de levantar suspeitas sobre a eleição do ano que vem, porque esses temas se converteram no novo combustível para manter a base dele coesa, em razão do forte apoio que ele vem recebendo nesse sentido.

À toda evidência, o atual momento é de muita dificuldade para o presidente, que  costuma atuar de forma estratégica para preservar seu apoio na população, embora, ao contrário disso, ele vem caindo precisamente em razão da sua demonstração de insensatez na condução de muitas questões importantes.

Assessores do presidente do país afirmam que ele se sente acuado pela perda de popularidade, pelo avanço das investigações da CPI da Covid no Senado Federal e pelas dificuldades de encontrar o partido político ideal para a disputa da reeleição, no próximo ano, fatos estes que estão servindo para alimentar a sua estupidez, que procura conduzir o projeto sobre o aperfeiçoamento das urnas eletrônicas em dissonância com os comezinhos princípios do entendimento, do bom senso e da racionalidade.

A ideia que vem sendo feita com o ingresso de um dos principais líderes do Centrão no governo, com acento na Casa Civil, é o de que ele propicia o misto de benefício e prejuízo políticos para o presidente do país, segundo avaliação de aliados, que veem, de um lado, a consolidação do seu apoio político no Congresso Nacional, e, de outro, afasta de vez o fantasma de processo de impeachment, mas tal medida contribui para corroer o seu discurso eleitoral contra a velha política que marcou a campanha eleitoral de 2018.

Onze partidos de oposição protocolaram pedido no sentido de o TSE interpelar o presidente do país para que ele preste esclarecimentos sobre as acusações feitas por ele contra as urnas eletrônicas, sob o argumento de que "o ato configurou um verdadeiro constrangimento às instituições democráticas e ao Estado de Direito".

Enfim, é preciso ficar claro que a discussão sobre a defesa de projeto que tramita no Congresso, pretendo o aperfeiçoamento da votação, é absolutamente legítima, porém o presidente não consegue se comportar no âmbito da normalidade própria da civilidade, que se assenta no salutar princípio do diálogo construtivo, tendo por base a argumentação inteligente sobre a matéria, onde não tem o menor cabimento a interferência como a que vem sendo feita pelo presidente, de modo irracional e espalhafatoso que somente contribui para dificultar a melhor condução da matéria, conforme mostram os fatos.

Ao afirmar “mas não aceitaremos uma farsa como querem nos impor”, o mandatário demonstra extrema insensatez, para não dizer algo pior, tendo em vista que o sistema eleitoral vigente é exatamente o mesmo que funcionou quando ele se elegeu, em cuja ocasião não houve qualquer restrição nem suspeitas quanto à credibilidade dele, o que vale dizer que a aceitação foi plena, em todos os sentidos incontestáveis, valendo lembrar que nada, absolutamente de novo aconteceu nesse interregno, ou seja, as urnas eletrônicas são as mesmas que operaram na eleição dele, mas, por motivos não conhecidos, elas agora são imprestáveis, sem que haja um só caso a justificar a pretendida impugnação, salvo a necessidade da modernidade, o que é natural.

Até se poderia aceitar, como justa e normal, a alegação sobre possível “farsa” se realmente o presidente tivesse competência para apontar qualquer forma de irregularidade, de modo a caracterizar falha capaz de interferir na regularidade da votação, com poder de prejudicar, de forma deliberada, um dos candidatos, fato que se exigiria a adoção de imediatas medidas saneadoras.

Agora, não passa de ridicularização se alegar possível imposição de “farsa”, quando o próprio presidente foi eleito pelo sistema que ele simplesmente esculhamba, sem ter qualquer elemento de base para a sua sustentação, quando o razoável seria se suspeitar de algo quando tem ao menos a comprovação de que algum fato irregular capaz de causar prejuízo para algum candidato, tendo por base os elementos do questionamento pertinente.

Diante da insistência do presidente, sem a menor consistência sobre as suas argumentações, salvo apenas a suposição de que as urnas são fraudáveis, seria o mesmo que se dizer que o mundo vai acabar, o que é pura verdade, mas somente para aqueles que tiveram com a sua validade de vida vencida.

Então, o que se pode dizer é que o sistema que alimenta as urnas eletrônicas é tão seguro quanto às afirmações reiteradamente pronunciadas pelo presidente do pais, em que, em ambos os casos, ninguém consegue convencer sequer uma santa alma, no sentido de que elas são ou não fraudáveis, pelo menos é exatamente essa a interpretação que deflui da infundada polêmica levantada muito mais com o objetivo da criação de torvelinho de fumaça, cuja discussão não terá fim, principalmente porque ela tem por base mecanismos empíricos que não levam a lugar algum, em termos de objetividade.

Seria muito mais proveitosa à discussão se as autoridades públicas estivessem realmente imbuídas com o propósito de se buscar resolver a questão por meio racional, inteligente e civilizado, com a exposição de elementos mostrando que o atual funcionamento das urnas eletrônicas permite o aparecimento de fraudes por meio da manipulação imperceptível delas, pelo uso de cartão eletrônico, viabilizando, por exemplo, o desvio de voto de candidato para outro, sem que ninguém pudesse detectar, e, diante disso, o ideal para se evitar tal prática seria a implantação de mecanismo que se permitisse o voto impresso, por exemplo, onde, a bem da verdade, não se evitaria a desonestidade do desvio de voto, mas ficaria muito claro de que, no caso de eventual auditoria, a falcatrua seria facilmente denunciada, eis que a quantidade dos votos das urnas seria fatalmente diferente daquela registrada no papel.

Sem dúvida alguma, essa inovação não teria o condão de se evitar fraudes, por meio do cartão eletrônico, mas seria importante instrumento para se prevenir sobre a possibilidade de auditoria vir a denunciar a prática de irregularidade, com o desvio de voto, o que é bem diferente do sistema atual, que é pura devassidão, diante da inexistência de parâmetro para se afirmar que a votação não foi violada, salvo em se acreditar que os técnicos responsáveis pelo controle do sigilo das urnas são absolutamente honestos e invioláveis, sem a mínima condição possibilidade de causar fraude eleitoral.

Causa perplexidade a maneira como o presidente do país se insurge contra o sistema eleitoral vigente, que até pode e dever ser passível de aperfeiçoamento, como é desejável, em termos de aperfeiçoamento para torná-lo com maior grau de confiabilidade, sem que isso tenha o condão de invalidar os resultados das eleições já realizadas, porque a última seria a primeira a passar por esse procedimento, atingindo exatamente o principal crítico, que não tem competência para apontar sequer um caso de fraude efetivamente comprovável, o que já seria suficiente para a completa condenação do sistema, com a consequente suspeita sobre os ocupantes de cargos públicos eletivos.

Em demonstração do extremo desespero de causa, citem-se que o presidente da República distribuiu mensagem de voz aos manifestantes, neste domingo, que também apoiam o voto impresso, dizendo, pasmem: “Sem eleições limpas e democráticas, não haverá eleições, em 2022.”.

É preciso que haja a normal compreensão, a bem da verdade e à vista dos fatos históricos, que as eleições já realizadas foram consideradas legítimas, inclusive as do próprio mandatário, até que prove em contrário, sob a luz da realidade jurídica, uma vez que não existe um único questionamento sobre o seu funcionamento na Justiça, o que vale dizer que elas são consideradas “limpas e democráticas”, por não haver fatos ou casos que as desabone, a ponto de causar tamanho tsunami em copo d’água e revolucionário mobilização da sociedade, no sentido da absurda ideia de não haver eleição se não tiver voto impresso.

À toda vidência, essa estapafúrdia e insana mentalidade de querer tentar, na base do grito, porque não existe prova de nada irregular a se tentar invalidar o futuro processo eleitoral previsto e assegurado pela Constituição Federal, porque essa tese maluca somente cabe na cabeça da tirania golpista, tendo em vista que não há respaldo jurídico para justificar tamanha estupidez, por ser interpretação superexagerada dos fatos, que melhor seriam tratados com moderação, tolerância, sensatez e responsabilidade cívicas.

A insensatez em causa se torna ainda mais grave e inadmissível por ainda envolver o apoio à medida de seguidores do presidente, visivelmente em dissonância com os princípios democráticos, quando ele acena por não haver eleições, cujo objetivo precisa sim ser implantado, por se tratar de aperfeiçoamento necessário ao acompanhamento natural à evolução da modernidade alcançada pelo homem, mas jamais da maneira truculenta e antidemocrática, completamente insensata como pretende o seu idealizador, que precisa ser modelo de competência, tolerância, sensatez e responsabilidade cívicas.

Com certeza, nem nas piores republiquetas, onde é comum a tirania imperar com naturalidade, se tentaria o aprimoramento do funcionamento de urnas na base do grito, porque lá deva existir o mínimo de racionalidade, no sentido de se compreender que a condução de projeto dessa magnitude certamente implica, sobretudo, o diálogo de alto nível, no sentido de se buscar a convergência das partes interessadas para a sua aprovação, normalmente como é feito nos países sérios e evoluídos, em termos políticos, civilizados e democráticos.       

À toda evidência, não se trata, em absoluto, como afirmado pelo presidente da República, de “farsa”, que “querem implantar”, porque o sistema eleitoral em vigência é fruto da normatização que vem sistematicamente funcionando ao longo da história, que não foi mexido em nada, e somente agora a discussão atingiu o clímax da irracionalidade, da intolerância, dando a entender que ele é simplesmente imprestável e inaceitável, quando se sabe que não é nada disso, solvo a necessidade de aperfeiçoamento, a ponto da sua condenação em ameaça infundada de recusa de não participação da reeleição por parte do mandatário, quando ele foi eleito precisamente pelas mesmas urnas ora questionadas, a par de não haver o surgimento de nenhum fato capaz de suscitar tamanha revolução sem causa.

Convém, em benefício do interesse público e da seriedade na condução dos assuntos importantes para a sociedade, que a matéria referente ao voto impresso seja discutida exclusivamente por meio de interlocução de alto nível, de modo que se busque o convencimento sobre a sua real necessidade por meio de diálogo civilizado, sério e inteligente, em que deva imperar o bom senso, a tolerância e a racionalidade, com imediato embargo das agressões e críticas que são próprias da completa falta de noção sobre a importância dos saudáveis princípios político e democrático.

Brasília, em 2 de agosto de 2021

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