segunda-feira, 15 de junho de 2020

Crime ou doença mental?


Em alusão a recentes declarações do presidente da República, um ministro do Supremo Tribunal Federal disse que estimular a entrada de pessoas estranhas em hospitais configura crime e afirmou que o Ministério Público deve atuar contra quem defende essa prática.
O ministro disse, textualmente, que "Invadir hospitais é crime --estimular também. O Ministério Público (a PGR e os MPs Estaduais) devem atuar imediatamente. É vergonhoso --para não dizer ridículo-- que agentes públicos se prestem a alimentar teorias da conspiração, colocando em risco a saúde pública".
Há poucos dias, o presidente do país pediu aos seus seguidores, por meio das redes sociais, que entrem em hospitais públicos e de campanha para filmarem os leitos de emergência que estão livres.
Na sua declaração, o presidente defendeu que, caso as imagens demonstrem alguma anormalidade, elas sejam enviadas ao governo federal, que o repassará para a Polícia Federal ou para a Agência Brasileira de Inteligência, para que sejam investigadas.
É mais do que notório de que, por vários motivos de segurança à higienização hospitalar e saúde dos enfermos, a entrada por pessoas estranhas, em unidades hospitalares e de saúde, somente é permitida com a devida autorização, em especial para se evitar transtorno no ambiente de trabalho e constrangimento aos pacientes, além de colocar o visitante em risco de potencial contaminação, sobretudo em meio à pandemia do coronavírus.
Como forma preventiva, as autoridades de saúde têm tido o cuidado de aconselhar que as pessoas evitem ao máximo se aproximarem de unidades hospitalares, como forma prudencial de diminuição das chances de contágio pelo Covid-19.
Como seria de se esperar, as declarações do presidente provocaram violentos repúdios e reações de profissionais da saúde, entidades de classe, políticos, imprensa e opinião pública, por entenderem que houve total insensatez por parte da autoridade máxima do país, em se tratando da interferência em ambiente de trabalho das maiores seriedade e responsabilidade, quando muitas vidas estão sob intensos cuidados médicos, na tentativa desesperadas de salvá-las.
Não obstante, nada disso foi suficiente para amansar os ânimos de um dos filhos do presidente do país, que, logo depois da mensagem do citado ministro do Supremo, se manifestou em defesa de seu genitor, em violenta e dura reação, que, sem mencionar nominalmente o ministro, o classificando de "bandido ou um doente mental".
De maneira muito enfática, o “todo-poderoso” defensor do presidente disse, ipsis litteris: “Só um bandido ou um doente mental para minimamente crer que o Presidente incentivou invasão a hospitais ao invés de entender que o citado foi para que cidadãos cumpram seu direito de fiscalizar os gastos públicos!".
Vejam-se até que ponto a estupidez atingiu e extrapolou a famosa rampa do Palácio do Planalto, onde um filho do mandatário acha que tem o direito de qualificar ministro da Excelsa Corte de Justiça, sem se adentrar no mérito sobre os predicativos dele, que aqui não vai ao caso, de “doente mental” e “bandido”, pasmem, somente porque ele entendeu que instigar a sociedade a entrar em hospital, como espécie  de invasor, configura crime.
Na verdade, é perfeitamente concebível que a introdução de estanhos ao setor onde pode ter doentes acometidos da Covid-19, doença altamente delicada e contagiosa, constitui, de forma precisa, ilegalidade em nível de crime contra o sistema da saúde pública e a humanidade, por se entender que a perturbação da ordem pública e a violação da privacidade dos profissionais de saúde e doentes são absolutamente injustificáveis.
É preciso se compreender, à vista do que foi alegado pelo filho do presidente, como justificativa, de que “o citado (a declaração do presidente) foi para que cidadãos cumpram seu direito de fiscalizar os gastos públicos”, que esse direito é imanente da cidadania, sendo necessária e importante a fiscalização cogitada pelo presidente, para que realmente seja possível a melhor aplicação do dinheiro público.
Porém, é preciso que a fiscalização dos gastos públicos tenha limites e se processe em ambiente de tolerância social, por meio civilizado aceitável, fazendo uso de instrumentos regulares e respeitosos aos sagrados direitos humanos, de modo a se evitar a extrapolação do direito da individualidade e a perturbação do bom andamento da prestação dos serviços públicos, o que vale se afirmar que não tem o menor cabimento o emprego de mecanismo errado na tentativa de se descobrir a possível existência de falhas, a se ter a ilação de que os fins justificam os meios.
Além do mais, convém salientar que o próprio governo já dispõe de instrumentos capazes para a apuração e o acompanhamento dos gastos públicos, para verificar se eles estão sendo realizados sob regularidade ou não, à vista da manutenção, pelos contribuintes, os mesmos cidadãos citados pelo filho do presidente, dos órgãos de controle interno e externo, como a Controladoria Geral da República, a Polícia Federal, o Ministério Publico e os Tribunais de Contas da União e dos Estados, o que, em princípio, dispensaria a intervenção cogitada da sociedade, que pode servir excepcionalmente para fazer qualquer trabalho de fiscalização, mas jamais com tamanho risco como de se entrar em hospitais incumbidos de cuidar de doentes potencialmente transmissores do Covid-19.
Ou seja, talvez até se compreenderia, mesmo com muito esforço, a iniciativa da medida cogitada pelo presidente do país se somente restasse a sociedade para promover trabalho tão perigoso, que nem compensaria, em termos de valorização da vida, porque dinheiro nenhum justifica a busca de informação sobre possível desperdício de recursos públicos, em situação extremamente arriscada de infecção e exposição da vida a perigo.    
Mutatis mutandis, parece muito mais propensa à doença mental a ideia de se entrar em hospital público que cuida de doentes infectados do Covid-19, para realizar algo estranho ao atendimento médico, do que à compreensão de que aquilo tem muita pertinência com ato realmente criminoso.
          Brasília, em 15 de junho de 2020

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