quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Visível desconforto


O presidente da República vem mostrando atitude bastante peculiar ao manifestar indignação no que tange aos malfeitos protagonizados por seus assessores, que, a depender da autoria do deslize, a falha é relevada, com a passagem de mão na cabeça ou, diferentemente disso, há certamente punição exemplar, com a imediata exoneração e peculiar escracho pela mídia, para não ficar dúvida sobre a autoridade dele.
Quando o envolvido no erro for integrante do grupo próximo ao mandatário, a tendência tem sido, invariavelmente, a concessão do perdão magnânimo, em especial em se tratando de amigo, familiar ou comungante da mesma cartilha ideológica.
Fora disso, não há salvação e o destino do assessor pecador tem sido a execração pública e impiedosa, como lição dura e disciplinar, na forma da perda do cargo.
Os últimos acontecimentos mostram, com bastante clareza, a firmeza de alguns exemplos dos dois extremos da reação presidencial, como no episódio que envolveu o então secretário-executivo da Casa Civil, que foi afastado do cargo após usar aeronave oficial para o seu périplo a Davos e à Índia, em missões oficiais.
O motivo principal a exoneração do cargo foi o gasto deveras evitável, porque a viagem poderia ter sido feita por meio da aviação comercial, muito mais econômica, como fizeram outros assessores, em circunstâncias semelhantes, mas isso foi o suficiente para provocar a ira do mandatário, que não perdoou o deslize e mandou embora o autor desse desatino oficial.
Para justificar o ato questionado, a assessoria da Casa Civil ainda tentou esclarecer o fato, tendo lembrado que o uso do avião seguiu as regras previstas na legislação de regência.
Ou seja, nesse entendimento, embora inoportuno o uso da aeronave, não houve contrariedade das normas vigentes, mas o presidente não quis nem saber e enxergou no episódio excelente oportunidade para mostrar rigor na disciplina, com a coibição de abusos.
Não obstante, os fatos mostram que o presidente não tem sido pródigo na aplicação de medida isonômica em relação a casos análogos, em que seu método tem variado conforme o assessor, a exemplo do uso de aeronave oficial pelo ministro do Meio Ambiente, para viagem, sozinho, à África, onde iria participar de seminário, cujo dispêndio foi avaliado na bagatela de cerca de R$ 800 mil, na logística de transporte.
O assessor dispensado estava como titular interino da Casa Civil e se fez acompanhar de três auxiliares, nada disso importou ao caso, porque o critério aplicado de rigor, neste caso, parece justo, a justificar austeridade nas despesas públicas, mas se estranha que a mesma régua não sirva para medir situações análogas, como visto acima.
Não fica bem para o presidente manter o ministro do Meio Ambiente e exonerar o ministro em exercício da Casa Civil, quando ambos incorreram em infrações parelhas, fato este que expõe falta de critério administrativo para a avaliação sobre fatos da mesma natureza.
Isso pode denotar errado marketing autopromocional da parte do presidente, que tende a se desviar da linha justa de julgamento sobre os fatos que estão sob a sua gestão, que não pode evidenciar disparidade nas suas decisões, em especial quando se tratar de casos idênticos, onde todos devam ser avaliados e julgados com base na mesma decisão e no mesmo parâmetro de entendimento, sob pena do cometimento de injustiça, que precisa ser evitada, em nome da seriedade do governo.
Também se mostra bastante constrangedor a aparente conivência do presidente com acusações nebulosas pesando sobre outros assessores próximos dele, que são  mantidos nos cargos, em que pese eles estarem sob investigações policiais, em clara afronta ao decoro, por se referirem a suspeitas de uso de laranjais ou atuação em flagrante conflito de interesses, dando azo ao entendimento sob péssimo exemplo de desprezo à gestão da coisa pública.
Em muitos casos suspeitos de ilicitudes, o presidente prefere não vê nada demais e sai-se com alguma pérola que imagina ser possível acobertar o que pode conter graves erros incompatíveis com a administração séria e respeitável, à luz dos princípios republicanos.
Outro dia, questionado sobre um desses casos suspeitos de anormalidade na vida pública, o presidente apenas disse, de forma nada apropriada à seriedade, de que, verbis: “se for ilegal, a gente vê lá na frente”, resposta essa que não condiz com o perfil de estadista que precisa ter  capacidade para decidir conforme a situação de momento, sem essa de deixar para avaliá-la posteriormente, em clara demonstração de incompetência e irresponsabilidade, quando se sabe que a gestão dos negócios públicos não admite questionamento sem imediata resposta, à luz dos princípios da legalidade e da transparência.
Salta aos olhos, como fato estarrecedor, o cristalino apadrinhamento ao titular do Turismo, que é alvo de investigações por suspeita de seu envolvimento em esquemas de candidaturas laranjas, que são objeto de diligências por parte da Polícia Federal e do Ministério Público, cujo cerne da acusação giza no possível desvio de verbas eleitorais e na formação de organização criminosa, suspeitas essas da maior gravidade, sob o prisma da moralidade pública e dos princípios republicanos.
Em um país com o mínimo de seriedade e evolução, em termos de moralidade republicana, pessoa envolvida sob essas suspeitas é imediatamente exonerada do cargo e colocada em quarentena até a conclusão do julgamento quanto à culpabilidade ou não.
Não obstante, o ministro do Turismo brasileiro, que responde a investigações sobre possíveis irregularidades com dinheiro público, continua tranquilamente no cargo, como se nada tivesse ocorrido de grave, apenas dando a entender que, se houver ilegalidade, isso será resolvido no futuro, mostrando a verdadeira face de governo que se perdeu quanto às juras de perseguição à moralização da administração pública, a despeito das estonteantes promessas entoadas na campanha eleitoral.
Não dúvida de que a relação de servidores suspeitos de envolvimento em malfeitos ultrapassa em muito o limite do tolerável, ou seja, nenhum, porque governo sério e respeitável não pode tolerar a permanência no cargo de alguém sendo investigado por suspeita da prática de ato inquinado de irregular, mas isso, na prática, não vem sendo observado no atual governo, conforme mostram os fatos.
À toda evidência, na atualidade, o poder central do país convive com visível e em completo desconforto, tendo alguns ministros sob investigação, inclusive um deles condenado, e outra parcela de importantes assessores na mesma situação incômoda, à luz do salutar princípio da moralidade, que não tolera qualquer mácula na gestão pública.
Há sim sério risco de o governo ser contaminado com o vírus pernicioso dessa inadmissível condescendência palaciana, por não haver a menor plausibilidade a prática de dois pesos e duas medidas, em casos análogos, que vem sendo aplicada, sistematicamente, de forma desleixada e insensata, pelo presidente da República, em clara demonstração da fragilidade da escala de valores e princípios utilizada por ele, que deveria seguir exclusivamente única linha retilínea de julgamento, em benefício e consonância com os princípios democrático e republicano.
Brasília, em 5 de fevereiro de 2020

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