sábado, 29 de fevereiro de 2020

A estrada da discórdia

Aparece, em vídeo, a imagem de deputado quebrando a corrente que protegia todas as noites a Terra Indígena (TI) Waimiri-Atroari, ocupada pelo povo Kinja, que habita na proximidade da BR-174, em Roraima.
O político usou alicate e motosserra para arrancar a proteção, tendo contado com o auxílio de apoiadores, cujo ato foi também registrado por pessoas que estavam no local e teve repercussão nas redes sociais.
O Ministério Público Federal informou que já foi notificado sobre o caso, mas não quis declarar se a ação do parlamentar caracteriza crime.
A aludida corrente vem sendo usada pelos índios, pasmem, desde os idos anos 1970, quando o Exército brasileiro construiu a BR-174, que liga Boa Vista a Manaus, a qual impede o trânsito de carros de passeio entre 18h e 6h, sendo permitido apenas o tráfego de carros oficiais, veículos com alimentos perecíveis e ônibus de transporte de passageiros.
A Funai esclarece que a medida faz parte de decisão adotada pelo Exército, com base no Subprograma de Proteção Ambiental do Programa Waimiri-Atroari, e "tem por finalidade controlar o tráfego nas estradas existentes dentro da terra indígena e evitar ações predatórias da fauna".
A Funai disse ainda que as correntes evitam "que carros de passeio ou caminhões em alta velocidade atropelem animais de hábitos noturnos, muito comuns às margens daquela estrada".
A fundação também informou que os índios já substituíram as correntes quebradas.
Depois de quebrar a corrente, o parlamentar disse que "Nunca mais essa corrente vai deixar o meu estado isolado. Presidente Bolsonaro, é por Roraima, é pelo Brasil. Não a favor dessas ONGs. Nunca mais".
O parlamentar declarou que a decisão levou em conta a falta de respostas sobre o fim do uso da corrente pela Funai e pelo Exército.
O político acredita que a interdição do trânsito à noite impede o desenvolvimento do estado em outras frentes econômicas para além do funcionalismo público, tendo alegado que "Roraima ficou atrasado. Por causa disso, somos os únicos a não ter energia ligada ao Sistema Interligado Nacional, temos um custo de vida alto e não somos um estado competitivo em razão da falta de liberdade do direito e ir e vir. Essa é uma demanda de um problema que maltrata o nosso povo há anos. Foi o principal problema que ouvi no sul do estado durante a campanha. Como não tive resposta dos órgãos competentes, resolvi tirar com as minhas próprias mãos".
Segundo levantamento realizado pelo site do UOL, a questão referente à corrente em apreço é objeto de demanda judicial, desde 2004, que pende, pasmem, de laudo, desde 2009, a pedido do juiz da causa, com pertinência a estudo antropológico para apontar os hábitos noturnos dos índios às margens da estrada.
Os estudos foram produzidos pelo Instituto de Antropologia da Universidade Estadual de Roraima (UERR), tendo virado livro publicado em 2016.
Consta que estudos etnográficos foram realizados no curso de quatro anos e "O laudo trata do impacto do ponto de vista. O fechamento tem um amparo legal. Eles controlam a BR-174, sendo fechada durante a noite. (...) Eles [índios] têm hábitos noturnos, há comunidade bem próximo às margens da BR-174 e riscos à vida desses indígenas, tanto que tem registros de sequestros de índios por pessoas em carros que passaram pela estrada".
O autor dos referidos estudos é antropólogo, tendo afirmado apenas que o laudo não aponta juízo de valor e que eles atentam tão somente para as questões especificadas referentes às partes.
O processo em causa está na fase conclusiva, com a entrega das alegações finais pelo Ministério Público Federal, Advocacia Geral da União, Conselho Indígena da TI Waimiri-Atroari, Funai e Estado de Roraima.
É evidente que a atitude do deputado, por mais que ela demonstre boa intenção da parte dele, não tem o menor cabimento, na atualidade, diante da estupidez que condiz com ato de visível violência, que funciona em negação aos princípios normais de civilidade, na tentativa de se resolver, no peito e na raça, algo que até seja considerado errado, mas a via recomendada passa pela Justiça, que tem competência para dirimir as questões de ordem pública e civil.
Depois do incidente protagonizado pelo deputado, a Justiça Federal determinou que a União e a Fundação Nacional do Índio adotem medidas necessárias para manter as correntes de controle de tráfego na divisa entre Roraima e o Amazonas, região da Terra Indígena Waimiri Atroari.
Nem precisa de muito esforço para se concluir o tamanho da estupidez envolvendo o funcionamento de estrada pública em terras indígenas, onde o direito do cidadão, que pagou por sua construção, para os seus legítimos usufruto, benefício e conforto, são completamente ignorados, tendo que se submeter às ideias de mentalidades atrofiadas e retrógradas de autoridades públicas, ao permitirem que, em pleno século XXI, a sociedade ainda seja obrigada a pagar pela indiscutível e nefasta incompetência administrativa, em cristalino atraso dos povos daquela região.
A questão poderia ser resolvida, de forma tranquila e racional, com o desvio razoável da estada das terras indígenas, sabendo-se sobre a existência da reserva indígena, quando do projeto da sua construção, ou seja, poderia haver pouco mais de custo, mas se evitaria prejudicar os negócios dos usuários e preservaria a vida da população indígena.
Agora, diante dessa evidente falta de cuidados ou até mesmo de inteligência, os órgãos governamentais poderiam estudar alguma viabilidade do deslocamento, em forma de demarcação da reserva indígena, para local seguro e distante da estrada, permitindo que o seu uso não causasse nenhum transtorno às atividades dos aborígenes, que precisam do respeito às suas condições de sobrevivência nas suas terras, sem interferência no direito de locomoção das pessoas e também sem impedir o desenvolvimento dos povos.
Vejam-se ainda que, na impossibilidade material da adoção das referidas medidas, que são absolutamente factíveis, sob o prisma do entendimento, as autoridades poderiam ter adotado medidas de racionalidade capazes de limitação de velocidade, nas áreas da reserva indígena, de modo que os veículos pudessem trafegar, a qualquer hora, respeitando os direitos e as integridades dos índios e dos animais, em velocidade reduzida e civilizada, sem necessidade de pernoitar no local extremamente inóspito, porque nada justifica a permanência de situação ridícula como essa de se permitir o fechamento de estrada, quando existem meios seguros para a garantia do tráfego na estrada, a exemplo do que ocorre durante o dia, sem qualquer incidente a prejudicar a vida dos índios.
          É sabido que, na forma da legislação do trânsito brasileira, nenhuma estrada pode ser fechada para o atendimento de interesses de quem quer que seja, muito menos para os povos indígenas, que são protegidos por leis específicas, mas elas não podem sobrepor às leis aplicáveis aos demais brasileiros, precisando, nesse particular, que sejam respeitadas igualmente as leis aplicáveis tanto aos indígenas como aos demais brasileiros, de modo que todos sejam beneficiados e possam se relacionarem em condições de civilidade, sem que nenhuma das partes seja beneficiada ou prejudicada unilateralmente.
A bem da verdade, é extremamente vergonhoso que reserva de índios possam ter supremacia sobre os direitos dos demais brasileiros, como se eles fossem os suprassumos do Brasil, a justificar total submissão a eles, inclusive com impedimento para se encontrar solução razoável para questão simples e superável, por meio de boa vontade e interesse para o equacionamento do problema e a sua solução, na forma como indicada acima ou por outros mecanismos racionais que possam atender, de maneira satisfatória, os interesses dos índios e usuários da estrada, que foi construída para ser usada permanentemente, durante o dia e a noite, para benefício dos brasileiros, não importado etnias, raças e muito menos ideologia.  
          Brasília, em 29 de fevereiro de 2020

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