domingo, 29 de março de 2020

A vida em perigo


Diante do muito que se ouve sobre o terrível coronavírus, ainda vai-se falar bastante sobre a tristeza causada por essa peste, que tem o poder devastador de aniquilar o ser humano, enquanto importantes autoridades e seguidores ficam defendendo a implantação de modelo de comportamento que precisaria primeiro ser testado, segundo os padrões científicos recomendados, embora muitos sejam os médicos que aderem à causa, possivelmente insensíveis à cruel realidade sobre os fatos.
Acabei de ler relato de profissional que se encontra no epicentro da crise, que contou minúcias sobre situações que tocaram profundamente o meu sentimento de pessoa muito sensível com os fatos da vida, procurando compreendê-los como pessoa comum, mas chega o momento em que fica muito difícil não se comover diante da triste, cruel e nua realidade, que não pode ser mudada por meio de medidas meramente estapafúrdias, como se elas fossem a salvação da humanidade.     
Uma enfermeira, em depoimento ao G1 do jornal O Globo, conta o que presencia diariamente dentro da Unidade de Terapia Intensiva de grande hospital onde trabalha e diz a dura realidade que acontece com pacientes que não param de chegar infectados pelo novo coronavírus, tendo chegado à conclusão de que “A guerra veio até mim (a enfermeira)”.
Vejam exatamente o que ela disse “Hoje, quando começa a dar uma cinco da tarde, eu já começo a ficar ansiosa, porque amanhã eu estou de plantão. Tenho dormido menos por causa da ansiedade e fico com insônia. Diante da importância do depoimento da profissional, como forma de compreender um pouco a extensão da gravidade do momento, convém que as pessoas conheçam o seu conteúdo, que é transcrito a seguir. Eu comecei a sentir que as coisas iam mudar quando eles isolaram a nossa maior unidade. Colocaram várias avisos, ‘a partir daqui não entre’, e a partir desse momento eu vi que realmente estava acontecendo alguma coisa diferente. Nesse dia, lá pelo dia 5 ou 6 de março, também começaram treinamentos a respeito de colocação e retirada de equipamentos de proteção individual.(...) Mas, para mim, o dia que realmente pegou foi o dia que entrei nessa unidade onde estavam os pacientes com Covid confirmado, no dia 20 de março. Eu não sabia, eu saí da minha casa como se tivesse ido para o meu plantão normal, ficar com os pacientes graves de UTI, mas não os com Covid. Quando eu cheguei, a gente tem uma escala diária, e eu descobri que estava escalada nessa unidade. Quando você vê na televisão, quando você lê as notícias na internet, não é a mesma coisa de quando você entra dentro do quarto e se depara com a paciente entubada, precisando de droga vasoativa, brigando com a ventilação mecânica, e foi bem difícil. Assim, eu já estou acostumada a essa realidade de UTI, para mim não é uma coisa assustadora, mas quando eu sabia que era o Covid positivo, eu fiquei com medo. Esse dia tinham cinco pacientes, quatro estavam entubados, e um estava com o uso de uma máscara de oxigênio, porém ele foi entubado no final do plantão. A partir desse dia para cá teve uma mobilização gigantesca, tanto da contratação de pessoas, como de treinamentos e protocolos para atender essas pessoas.(...) De uma semana para cá, eu vejo que esses pacientes não melhoram. De todos esses pacientes que a gente entubou, a gente não conseguiu tirar ninguém da intubação ainda. Isso é difícil porque você não vê progressão, você não vê o paciente evoluir de uma forma positiva. Não que ele piore, mas ele continua naquela mesma condição. Parece que ele não melhora, então isso é muito ruim, porque gera mais ansiedade, a gente vê o número de pessoas que estão contraindo a doença e vão precisar de leitos e você não consegue, sabe, gerar um fluxo de entrada e saída. Os pacientes têm bastante medo. O paciente que eu falei que estava com uma máscara de oxigênio, que foi entubado, aconteceu uma situação muito triste e que mexeu bastante comigo. Ele estava consciente e a gente precisou avisar para ele que ele ia ser entubado, e ele fez uma chamada de vídeo com a família. Então a gente estava no quarto enquanto ele estava se despedindo dessa família. Se despediu do filho, da esposa, chorou, ficou muito emocionado. E aí foi muito triste, todo mundo ficou super emocionado porque assim, você vai ser entubado, e talvez você nunca mais acorde né. Quando entuba, a pessoa recebe medicamentos para ficar sedada, em coma induzido. A gente fala que é para acoplar melhor [o tubo], para conseguir fazer o pulmão ventilar adequadamente, porque se ele fica acordado, sem sedação, o tubo incomoda muito. (O paciente segue entubado). Acho que ninguém estava preparado para isso. E eu fico mais preocupada porque acho que ainda vai piorar muito antes de começar a melhorar. Quando eu decidi fazer faculdade de enfermagem tinha aquela coisa toda ideológica, de querer um dia ir para uma guerra ou participar do Médico Sem Fronteiras, sabe? Fazer uma missão na África… E aí até falei para um amigo, acho que nem vou precisar ir para a guerra fazer uma missão, acho que minha guerra vai ser essa daqui. Não precisei fazer nada para enfrentar, a guerra veio até mim. Então, o que a gente pode pedir para as pessoas é para elas ficarem em casa o máximo que elas puderem, tentar ajudar a gente que está ali na linha de frente. Porque o que eu posso fazer é ir para a UTI e ajudar as pessoas que estão lá. Quem não trabalha com isso pode fazer sua parte e ficar em casa. Não disseminar o vírus também é uma função importante nesse momento.”.
Os fatos mostram que não passa de santa ingenuidade, para não se dizer algo mais apropriado, se pretender caracterizar, de forma generalizada, o coronavírus como simples “gripezinha”, porque, na realidade, ele é forte pneumonia, em alguns casos, que mata, em estado de demorado sofrimento, conforme o relato da enfermeira, in verbis: “a gente vê o número de pessoas que estão contraindo a doença e vão precisar de leitos e você não consegue, sabe, gerar um fluxo de entrada e saída.”.
À toda evidência, o aludido depoimento tem o condão de contribuir para se ajudar as pessoas de boa vontade a enxergarem a real gravidade da situação e a se permitir que elas se conscientizem sobre a importância de ficar em casa, saírem apenas em situações realmente necessárias, e continuarem higienizando bem as mãos com água e sabão ou álcool em gel e evitarem ficar perto de muitas pessoas.
Também é preciso se reconhecer que os profissionais da saúde, desde os médicos até as pessoas da desinfecção e limpeza, são dignos do mais puro reconhecimento pelo trabalho de extremo humanismo, que merecem elogios por parte da sociedade, porque eles, no seu conjunto, fazem o máximo para salvar vidas e ainda demonstram enorme sentimento humano em solidariedade com a dor dos outros, além da compaixão e da exposição ao risco da própria vida, quando eles participam nesse penoso processo de tentativa de salvação de vida.
Enquanto esses profissionais, que merecem sublime respeito da sociedade, sentem na pele as agruras da fragilidade da vida, que não consegue resistir ao poder destruidor do coronvírus, pessoas insensíveis e imbuídas de outros propósitos estão defendendo teses que podem contribuir para que as terríveis estatísticas possam disparar com o número descontrolado e descomunal de infectados, a despeito da impossibilidade de tratamento compatível com a gravidade desse vírus, fato que choca e estarrece a sensibilidade humana.
Parece pouco importar a guerra  travada nos hospitais, mostrada por quem sente no dia a dia a cruel realidade de perto, nos olhos, nas mãos, na pele, na alma, porque há quem a ignore e ainda desdenhe dela, como se fosse uma “gripezinha” qualquer, que não incomoda a ninguém, mesmo que os fatos digam o contrário.
Lamentavelmente, a ciência ainda cogita quadro desolador de infectados e mortes, com destaque inclusive para grupos de risco e o pior é que esteja em isolamento ou não.
Pode-se perceber que a citada enfermeira trabalha em hospital de referência médica, onde há muito mais recursos do que em hospital público e ainda mostra, mesmo assim, quadro bem deprimente, o que se pode inferir que a situação é bem mais grave nos demais hospitais da rede pública, onde as carências são mais acentuadas, o que será ainda mais difícil para o tratamento dos doentes infectados pelo coronavírus.
A preocupação existente nos hospitais públicos diz respeito tanto à falta de equipamentos de proteção para esses verdadeiros heróis como pela carência de recursos materiais e de pessoal, que certamente serão insuficientes para o atendimento da demanda de doentes gravíssimos.
          Se as pessoas não se sensibilizam com seus entes queridos, com aqueles com mais de 60 anos ou até consigo mesmo, já que acreditam que a doença será inofensiva para eles, pensem naqueles que estão na linha de frente, que serão, certamente, afetados se a disseminação não for contida com o devido rigor.
Enfim, trata-se de relato com muita naturalidade que retrata cenário apenas de pequena dimensão, mas que exprime ambiente de extremas desolação, tristeza e comoção, levando ao preocupante entendimento de que as principais autoridades públicas brasileiras precisam, com muita urgência, tomar conhecimento do que realmente está acontecendo nas Unidades de Terapia Intensiva dos hospitais que tratam do combate à desgraça do coronavírus, inclusive indo lá, para terem reais condições humanas de decidir sobre as medidas, tendo por base a experiência in loco sobre a dureza dos fatos e sentir exatamente como a vida humana passa a ser transformada, em pouco tempo, apenas em meras cinzas. 
Brasília, em 28 de março de 2020

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