sexta-feira, 4 de junho de 2021

A reafirmação da irracionalidade

 

Por incrível que possa parecer, o senador que massacrou e humilhou uma médica, por ocasião do depoimento dela à CPI da Covid, do Senado Federal, disse, com aquela mesma cara de brutamonte desumano e irracional, que “não buscou desqualificar Nise Yamaguche.”, em absoluta contrariedade ao que pensa o resto dos brasileiros sobre o tema.

O senador disse que “desaprovou as falas da médica que apresentava visões equivocadas sobre vacinas e sobre tratamento precoceEu quis mostrar que nunca deu certo se levar uma medicação, mesmo velha, antiga, que é a hidroxicloroquina e outras medicações, serem usadas para uma doença nova, desconhecida".  

O parlamentar, que também é médico, afirmou que “fez várias perguntas para tentar ver a base das visões da médica e não para menosprezá-la. Não ‘suportava mais’ ver negação de fatos.”. 

O senador afirmou que "Não foi para atingi-la. Tratei o tempo todo a doutora Nise Yamaguchi como senhora, vossa senhoria. Claro que cada pessoa tem uma maneira de se dirigir. Se a minha veemência aconteceu, aconteceu porque não suportava mais ver tantas coisas negadas que foram afirmadas no passado"  

Em conclusão, o senador afirmou que "O que eu queria dizer e desqualificar é que o Ministério da Saúde, como instituição jurídica, não pode prescrever receitas para 15 milhões de brasileiros. Era o que eu queria mostrar". 

Com a finalidade de refrescar a memória, como se diz no popular, eis abaixo pequeno resumo animalesco do nada comportamento do senador, copiado de texto da minha lavra, que ele considera normal.

“Nesse ínterim, o senador a inquiriu assim: “Até porque a senhora deve saber a diferença entre um protozoário e um vírus. A senhora sabe? Qual é a diferença, doutora? Doutora Nise, estou perguntando para a senhora”.

A doutora disse que “Protozoários são organismos celulares, e os vírus são organismos que têm o conteúdo de DNA ou RNA”, mas o senador a retrucou, tendo afirmado isto: “Não senhora, não senhora, tenha paciência. Não é bem assim. A senhora não é infectologista, se transformou de uma hora para outra, como muitos no Brasil, se transformaram em infectologista, e não é assim”.

Nessa mesma linha de rudeza coloquial, o senador disse que "A senhora não soube explicar o que é o vírus. Vírus não são nem considerados seres vivos. Portanto, uma medicação para protozoário nunca cabe para vírus”, fazendo referência ao Covid-19.

Na sequência, o senador perguntou à médica se ela sabia a que grupo pertence o Covid-19?, ao que foi respondido por ela que pertence “Ao coronaviridae. Ele é um coronavírus”.

Nesse momento, o senador foi ainda mais grosseiro e disse que “A senhora não sabe, infelizmente. A senhora não sabe nada de infectologia. Nem estudou, doutora”.

O senador também fez questão de perguntar à médica detalhes sobre o primeiro caso de coronavírus no mundo, tendo formulado o seguinte: “Diga o número, diga o ano. Pode pegar os livros aí porque a senhora não tem na cabeça, certamente. Não leu, não estudou. E, doutora, de médico audiovisual, este plenário está cansado. De alguém que ouviu e viu, e não leu, e não se aprofundou, e não tem estudado”.

Enquanto o senador discursava loucamente, fazendo ácidas críticas à profissional, a médica tentava usar a palavra, tendo falado isso: “Agora, o senhor me dá licença? Eu preciso responder a uma série de acusações que o senhor me fez”.

A indelicadeza do senador foi tanta que ele ainda ressaltou, verbis: “Eu não queria constranger a senhora, mas a senhora não sabe responder a absolutamente nada. Eu fiz um textezinho simples com ela. Qualquer menino de segundo ano, terceiro ano. Eu fui professor de química por muitos anos, de biologia. Isso é ‘bê-a-bá’”.”.

Pois bem, salvo o órgão representante dos médicos, diante de falhas graves, devidamente comprovadas, ninguém mais tem competência para, outras medidas, desaprovar não “as falas”, mas sim as práticas médicas, em razão de possíveis implicação contra a saúde de pacientes, não cabendo a mero senador, por falta de competência legal, desaprovar sequer opiniões sobre possíveis visões pessoais, equivocadas ou não, sobre quaisquer assuntos, inclusive vacinas ou tratamento precoce, cuja responsabilidade é de exclusiva autoria da médica, que jamais fora admoestada pelo conselho da sua classe sobre o seu desempenho profissional.

O senador, que é apenas integrante da CPI, somente tem competência legal para fazer inquirição aos depoentes, falecendo a ele poder para “mostrar” o que está certo ou errado, mesmo que o assunto esteja na sua área profissional estranha ao exercício do cargo de parlamentar, que tem atribuições específicas, mas que foram completamente violadas por força das suas ignorância e inexperiência política.

É preciso ficar claro que a competência da CPI é delimitada às investigações sobre o objeto definido no ato motivador da sua instalação, qual seja, no caso, a apuração se houve negligência do governo no enfrentamento da Covid, ficando sob a interpretação de atos e atitudes absurdos protagonizados pelo senador como abuso de autoridade e deliberada violação dos direitos humanos, diante das indevidas e despropositadas lições morais e outras relacionadas à prática médica, que não tinham o menor cabimento sobre a sua discussão naquele evento.   

O senador está sobejamente equivocado e isso, pelo menos, ele assume, quando afirma que tentava “ver a base das visões da médica”, quando a CPI não foi criada para se aquilatar a competência, em termos de visão sobre conhecimentos profissionais, mas sim para a apuração do desempenho do governo diante de fato específico.

Ao afirmar que não quis atingir a honra da médica, o senador se mostra extremamente incoerente, ao admitir, em seguida, que a sua veemência ocorreu, pasmem, somente “porque não suportava mais ver tantas coisas negadas”, como se ele, ao afirmar tamanhas grosserias, absolutamente estranhos ao objeto do depoimento para finalidade diversa, fosse a pessoa indicada com poderes para suportar ou deixar de suportar algo que não diz com a competência de mero integrante de CPI, que não tem direito, por falta de amparo legal, de opinar sobre nada, conquanto a sua obrigação é exclusivamente perguntar e colher o resultado das informações prestadas pelos depoentes, para depois transformá-las em análise no relatório, que ainda será objeto de aprovação ou não, sem nenhuma utilidade no Senado Federal, visto que o seu conteúdo será remetido para o Ministério Público, para as providências da sua alçada constitucional.

Não tem o menor cabimento jurídico, precisamente por falta de amparo constitucional, o senador “dizer e desqualificar é que o Ministério da Saúde” não tem competência para a prescrição de receitas, porque, se isso é verdade, não é por meio da CPI que seja dito, quanto mais aproveitando depoimento que não tem essa finalidade, mas sim com a adoção de medida judicial pertinente, no âmbito da competência constitucional do parlamentar de fiscalizar os atos do governo, com vistas a se buscar a precisa reparação dos atos que ele achar que estejam fora da legalidade.

Enfim, as declarações do senador somente afirmam e confirmam o seu completo desafinamento, em termos funcional, com as finalidades precípuas da CPI em causa, de modo que ele perde excelente oportunidade para se retratar perante a médica e a opinião pública e reparar, como é do dever de pessoa civilizada, educada e respeitosa, o grave crime perpetrado por ele contra pessoa que, em princípio, vem demonstrando extrema dignidade no cumprimento do seu dever profissional e de brasilidade, sendo merecedora da admiração e do respeito por sua enorme contribuição à causa da saúde pública brasileira, não merecendo nenhuma censura quanto ao seu trabalho, diante da ausência de fato a se comprovar algo em contrário.

Brasília, em 4 de junho de 2021

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