quarta-feira, 2 de junho de 2021

Repúdio à irracionalidade

 

No depoimento à CPI da Covid, do Senado Federal, uma médica que defende o tratamento precoce da doença foi questionada por um senador, que é médico especialista em ortopedia, sobre diversas situações médicas relacionadas com o tema em causa.

A médica se apresenta como imunologista e oncologista e tem sido uma das principais defensoras do citado tratamento e do uso da cloroquina para o combate à Covid-19, cujo medicamento é tradicionalmente usado para o tratamento da malária, doença provocada por protozoário, mas já foi comprovada a sua ineficácia para o combate à doença do século.

A médica foi especialmente convidada para falar à Comissão Parlamentar de Inquérito após ter sido apontada como uma das integrantes do “gabinete paralelo” da Saúde, no Palácio do Planalto, embora ela tenha negado essa condição, tendo declarado que é apenas "colaboradora eventual", para fins da Covid-19.

Na aludida audiência, o mencionado senador foi bastante incisivo nas suas perguntas, tendo até cobrado dela exames de pacientes tratados por ela com o medicamento e a apresentação dos resultados.

Nesse ínterim, o senador a inquiriu assim: “Até porque a senhora deve saber a diferença entre um protozoário e um vírus. A senhora sabe? Qual é a diferença, doutora? Doutora Nise, estou perguntando para a senhora”.

A doutora disse que “Protozoários são organismos celulares, e os vírus são organismos que têm o conteúdo de DNA ou RNA”, mas o senador a retrucou, tendo afirmado isto: “Não senhora, não senhora, tenha paciência. Não é bem assim. A senhora não é infectologista, se transformou de uma hora para outra, como muitos no Brasil, se transformaram em infectologista, e não é assim”.

Nessa mesma linha de rudeza coloquial, o senador disse que "A senhora não soube explicar o que é o vírus. Vírus não são nem considerados seres vivos. Portanto, uma medicação para protozoário nunca cabe para vírus”, fazendo referência ao Covid-19.

Na sequência, o senador perguntou à médica se ela sabia a que grupo pertence o Covid-19?, ao que foi respondido por ela que pertence “Ao coronaviridae. Ele é um coronavírus”.

Nesse momento, o senador foi ainda mais grosseiro e disse que “A senhora não sabe, infelizmente. A senhora não sabe nada de infectologia. Nem estudou, doutora”.

O senador também fez questão de perguntar à médica detalhes sobre o primeiro caso de coronavírus no mundo, tendo formulado o seguinte: “Diga o número, diga o ano. Pode pegar os livros aí porque a senhora não tem na cabeça, certamente. Não leu, não estudou. E, doutora, de médico audiovisual, este plenário está cansado. De alguém que ouviu e viu, e não leu, e não se aprofundou, e não tem estudado”.

Enquanto o senador discursava loucamente, fazendo ácidas críticas à profissional, a médica tentava usar a palavra, tendo falado isso: “Agora, o senhor me dá licença? Eu preciso responder a uma série de acusações que o senhor me fez”.

A indelicadeza do senador foi tanta que ele ainda ressaltou, verbis: “Eu não queria constranger a senhora, mas a senhora não sabe responder a absolutamente nada. Eu fiz um textezinho simples com ela. Qualquer menino de segundo ano, terceiro ano. Eu fui professor de química por muitos anos, de biologia. Isso é ‘bê-a-bá’”.

À toda evidência, o senador foi capaz de protagonizar verdadeiro espetáculo ridículo e patético, em nível tal vexatório que desqualifica não apenas a sua condição de parlamentar, mas de ser humano, por tentar reduzir à insignificância profissional médica de destaque na sua área de atuação, procurando, com suas perguntas inadequadas, inúteis e fora do contexto, salvo melhor juízo.

É claramente visível que as indagações do senador não levam a absolutamente nada, ante a finalidade institucional das investigações objetivadas pela CPI, que se destina, precipuamente, a averiguar se houve omissão por parte do governo, no enfrentamento da Covid-19.

Não há a menor dúvida de que o senador foi extremamente rude em agressividade, ao formular questões estranhas ao evento e em dissonância com os objetos da CPI, como se a médica estivesse sendo perquirida, em avaliação de altíssimos conhecimentos médico-científicos, para a ocupação de cargo no Senado, em situação completamente diferente da sua condição de mera depoente, tendo, na pior das hipóteses, apenas a finalidade de se avaliar a participação ou não dela no chamado “gabinete paralelo”, que teria montado pelo governo e funcionado no Palácio do Planalto.

Diante disso, convém que a atitude desumana, agressiva e injustificável demonstrada pelo senador contra profissional de respeito e credibilidade, até que se prove em contrário, seja repudiada e condenada, com veemência, pela sociedade que defende os princípios civilizatórios e de dignificação dos direitos humanos, como forma de se protestar contra explícitas intolerância, prepotência e abuso de autoridade, à vista da imperiosa necessidade de se preservar pelo respeito à integridade pessoal e aos princípios da seriedade e da responsabilidade, no âmbito da moderna cidadania.         

O senador precisava se conscientizar de que ele, como integrante da CPI, constitucionalmente é obrigado a funcionar estritamente como parlamentar, imbuído da responsabilidade apenas do cumprimento institucional público, sem nenhuma conotação médica, porque, no caso, ele não podia agir como se médico fosse e mostrou que é, fato este que ficou muito clara a sua despropositada falta de respeito ao seu semelhante, diante da indiscutível tentativa de desmoralizar a médica.

No âmbito do Estado Democrático de Direito, onde tem-se amplas liberdades, inclusive na profissão, evidentemente respeitados os princípios e as éticas aplicáveis, é admissível que o trabalho da médica, em intransigente defesa do emprego da cloroquina no tratamento precoce da Covid-19, mesmo sem o devido lastro do entendimento sobre o uso dele no meio cientifico, para a concessão da credibilidade à sua eficácia, fato este que não dá o direito de ninguém tentar humilhá-la, por meio de gratuitas grosserias, ofensas, arrogância e prepotência.

Urge que as investigações sob a incumbência da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, em funcionamento no Senado Federal, cinjam-se estritamente aos fatos que possam levar à conclusão inicialmente objetivados, no sentido de se levantar se houve ou não omissão governamental no combate à pandemia do novo coronavírus.  

Brasília, em 2 de junho de 2021

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