domingo, 26 de maio de 2013

O grito ensurdecedor da omissão

Por ocasião do balanço de um ano de trabalho da Comissão Nacional da Verdade, uma integrante do colegiado se antecipou para anunciar que a conclusão dos trabalhos deverá recomendar que agentes do Estado respondam judicialmente por crimes cometidos durante o regime militar, sob o argumento de que crimes contra a humanidade não prescrevem e não são alcançados por anistia. Ela foi enfática em afirmar que “Crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. Se temos esse conhecimento, temos que recomendar que esses casos sejam judicializados internamente”. Segundo essa integrante, ao final dos trabalhos, será enviada "recomendação" para punição dos agentes aos chefes dos três poderes, tendo por base que a comissão foi criada para fazer narrativa sobre violações de direitos humanos, inclusive no regime militar, não tendo poderes para adotar medidas. Ela reconhece que há recente interpretação pelo Supremo Tribunal Federal reafirmando que a Lei da Anistia não permite punição a torturadores, pois existem normativos legais que impedem medida nesse sentido contra colaboradores do regime militar e pessoas que participaram da luta armada durante o regime militar. A sua esperança é de que, no futuro, o Supremo volte a analisar a lei e, com nova composição de ministros, tenha interpretação diferente sobre abrangência e constitucionalidade da norma. Ela afirmou que a comissão não vai enviar projeto ao Congresso Nacional com o objetivo de revogar a Lei de Anistia: “Não vamos fazer um projeto de lei, porque, enquanto comissão, não vamos tomar parte num movimento social”. O coordenador da comissão ressaltou que "Nós vamos nomear os autores. Temos que indicar as autorias, mas vamos indicar as autorias na medida em que nos sintamos sólidos para isso. Alguns nomes só vão ser comentados no final". Na forma como foi conduzido o balanço, a comissão permite que se tire a absurda ilação segundo a qual crimes cometidos por terroristas e guerrilheiros não são contra a humanidade, mas prescrevem e são alcançados por anistia, tanto que eles não serão objeto de apuração, esclarecimento nem de menção no seu trabalho. A primeira impressão causada pelos membros da comissão é de que existe forte e escancarado propósito de revide apontado para os agentes do Estado, à vista da garantia de se indicar somente nomes de torturadores, na tentativa de possíveis punições, em que pese se tratar de medida de plena inocuidade, à luz da Lei de Anistia, que teve por finalidade apaziguar os ânimos dos militares opressores e dos terroristas, estes, em grande quantidade, vivendo, à época, no exterior ou na clandestinidade. Impende lembrar que a aprovação da anistia, que agora se pretendem ignorá-la e invalidá-la, após se beneficiarem dela, teve por objetivo selar armistício definitivo entre os brasileiros com filosofias antagônicas, contribuir para aproximação de ideias nacionalistas e fortalecer a união de todos em prol da construção e do desenvolvimento do país. Não obstante, no entendimento da comissão, somente os agentes do Estado violaram direitos humanos, como se os crimes bárbaros perpetrados pelos terroristas e guerrilheiros não passassem de brincadeirinha, sem consequência, e, como tal, não estão sujeitos às censuras a serem aplicadas somente àqueles agentes. A esperança de haver revisão da leitura sobre a aplicação da Lei de Anistia pela Excelsa Corte de Justiça talvez esteja relacionada com a nomeação de juristas com o idêntico idealismo e filosofia da comissão, que é da mesma linha do governo, como se a jurisprudência do Supremo pudesse ser alterada ao sabor dos ventos e da vontade revanchista. A lei instituidora da comissão é de solar clareza, ao dizer, no seu art. 1º, que “É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.”. O aludido art. 8º estabelece que “É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data de promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção institucionais ou complementares,...”. Não há dúvida de que a comissão exorbita da competência legal que lhe foi atribuída, quando ela, de forma inexplicável, se desvia do exame e dos esclarecimentos sobre os fatos atinentes à violação dos direitos humanos ocorridos no período de 18/09/1946 até 05/10/1988, tendo por meta restaurar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação dos brasileiros. A sua finalidade é apurar a verdade plena e não parcial sobre os crimes que violaram os direitos humanos, sem a esdrúxula e ilícita exclusão dos crimes igualmente indignos protagonizados pelos terroristas e guerrilheiros. A comissão decidiu violar a vontade legal, ao resolver apenas tratar dos crimes dos agentes do Estado e enquadrá-los como torturadores, na esperança de possível punição, por desrespeito aos direitos humanos, como se os atos dos terroristas, de igual recriminação e perversidade, pelas mortes de inocentes e sórdidas espécies de maldades e barbaridades, não merecessem, na estapafúrdia visão míope, censura sob a ótica da grave ofensa aos direitos humanos, cujos autores sequer serão objeto de indicação aos chefes dos três poderes, certamente por serem, na atualidade, os verdadeiros “heróis” da pátria, ocupantes de cargos públicos relevantes e beneficiários de suntuosas indenizações. Não há dúvida de que os fatos históricos são imutáveis, sendo impossível a sua reconstrução para modificá-los ou para atender mero interesse de conveniência pessoal, mas a sua versão, infelizmente, pode ser contada de diversas maneiras: a verdadeira, a mentirosa ou a imparcial, a depender do prisma da fidedignidade ou não imprimida pelos historiadores, segundo a finalidade política objetivada, a intenção presumida ou outra pretensão que a verdadeira história não possa contribuir para os fins colimados. A versão da história, que nunca pode se afastar da verdadeira, somente deveria ser levantada e contada por historiadores capacitados, experientes e possuidores de idoneidade ilibada e comprovada, imunes à interferência do Estado ou de interesses escusos, sob pena de padecer de credibilidade, cujo resultado suspeito e impreciso não tem como contribuir para certificar a veracidade sobre os fatos e acontecimentos da humanidade. Expressiva parcela da população brasileira, representada pelas pessoas democráticas e desejosas de conhecer a verdade sobre os fatos históricos, sente-se incomodada com os gritos ensurdecedores da omissão quanto à verdade sobre a atuação também dos terroristas e guerrilheiros, porque eles fizeram parte desse passado negro que a comissão não tem o direito de negar à sociedade o seu integral esclarecimento, por constituir afronta flagrante à dignidade e aos princípios patriótico e humanitário. A maior perplexidade, diante da parcialidade dos exames, decorre em razão de a comissão ser mantida à custa dos tolos dos contribuintes, que entendem que, se há realmente necessidade de se efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional, haja dignidade para o pleno esclarecimento das violações aos direitos humanos. Também é absolutamente paradoxal o fato de a presidente da República se vangloriar de ter sido militante pela causa nobre da “redemocratização” do país e ainda demonstrar revolta pelos maltratos nos porões das prisões do regime de então, justamente devido à sua ativa e intensa participação nas organizações criminosas, mas as suas “gloriosas” atividades não serão objeto de registros e esclarecimentos. Por tudo isso, compete aos órgãos de controle, como a Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público, Tribunal de Contas da União etc., responsáveis pelo zelo e pela correta aplicação das normas jurídicas e dos recursos públicos, exigirem que a CNV realize seus trabalhos em consonância com a competência indicada na lei que a instituiu, observados a abrangência e os limites dos fins ali colimados, em respeito aos princípios éticos, sob pena de o seu resultado não merecer respaldo legal nem credibilidade pelos dignos juristas e homens de bem deste país. A sociedade tem o dever cívico de exigir que a chamada comissão da verdade observe fielmente os termos do art. 1º da lei que a instituiu, em harmonia com os consagrados princípios constitucional, legal e jurídico, de modo que os fatos revelados correspondam exatamente à vontade legal e às finalidades preconizadas de “... efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.”, sob pena de o seu resultado vir a padecer da credibilidade jurídica e do respaldo das justas críticas da imprensa e da população, por não refletirem a verdade plena. Acorda, Brasil!
 
ANTONIO ADALMIR FERNANDES
 
Brasília, em 25 de maio de 2013

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