quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Ultraje à Constituição?

 

No discurso que fez na Avenida Paulista, em São Paulo, o presidente da República afirmou que não vai mais cumprir as decisões de um ministro do Supremo Tribunal Federal, tendo dito o nome dele, além de voltar a atacar o sistema eleitoral brasileiro, outros integrantes do STF e governadores e prefeitos que tomaram medidas de combate à pandemia do coronavírus.

Ele foi enfático ao "Dizer a vocês, que qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou, ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais. Ou esse ministro se enquadra ou ele pede para sair. Não se pode admitir que uma pessoa apenas, um homem apenas turve a nossa liberdade. Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir, tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixa de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo. Mais do que isso, nós devemos, sim, porque eu falo em nome de vocês, determinar que todos os presos políticos sejam postos em liberdade".

O presidente do país também voltou a pedir o voto impresso e criticou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ao afirmar que "A paciência do nosso povo já se esgotou. Nós acreditamos e queremos a democracia. A alma da democracia é o voto. Não podemos admitir um sistema eleitoral que não fornece qualquer segurança. Nós queremos eleições limpas, democráticas, com voto auditável e contagem pública dos votos. Não podemos ter eleições onde pairem dúvidas sobre os eleitores. Não posso participar de uma farsa como essa patrocinada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Não vamos mais admitir que pessoas como Alexandre de Moraes continue a açoitar a nossa democracia e desrespeitar a nossa Constituição. Ele teve todas as oportunidades de agir com respeito a todos nós, mas não agiu dessa maneira como continua a não agir. Não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança; em uma ocasião das eleições. Dizer também que não é uma pessoa no Tribunal Superior Eleitoral que vai nos dizer que esse processo é seguro e confiável".

O mandatário aproveitou o ensejo para também atacar, em reiteração, governadores e prefeitos que seguiram a ciência e determinaram o isolamento social como medida para se evitar a propagação da Covid-19, tendo afirmado: "Vocês passaram momentos difíceis com a pandemia, mas pior que o vírus foram as ações de alguns governadores e de alguns prefeitos que simplesmente ignoraram a nossa Constituição e tolheram a liberdade de expressão, tolheram o direito de ir e vir, proibiram vocês de trabalhar e de frequentar templos e igrejas para sua oração".

Por fim, encerrando o discurso, o presidente brasileiro reafirmou que não vai ser "Preso, morto ou com vitória. Dizer aos canalhas, que eu nunca serei preso".

À vista do discurso presidencial, muitos juristas afirmaram que o chefe do Executivo cometeu crime de responsabilidade, ao se declarar oposição a princípios constitucionais, no caso de afirmar que não vai cumprir decisões do ministro do Supremo.

Os especialistas entendem que os atos insuflados pelo presidente brasileiro e as ameaças aos ministros do Supremo e ao TSE são formas afrontosas diretas  à Constituição brasileira.

Um doutor em Direito Público e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro disse que "Não existe na gramática constitucional o enquadramento de um ministro do Supremo Tribunal Federal nas suas decisões judiciais pela vontade unipessoal do presidente da República que é um chefe de outro poder que no Brasil é um chefe de estado. Então, o discurso do presidente me parece claramente um discurso de ameaça à independência e harmonia entre os poderes. E, em seguida, ele diz ele não cumpriria mais nenhuma decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, que ele não existe mais pro presidente da República. Daí que ele ameaça também descumprir decisões judiciais. Em uma e outra hipótese e do ponto de vista jurídico constitucional, o atentado à independência e harmonia entre os poderes e o descumprimento de decisões judiciais, configuram em tese a prática de um crime de responsabilidade pelo presidente da República".

Na opinião do referido mestre, "O que pode resultar, a juízo do Congresso Nacional, a autorização da Câmara, e decisão final do Senado, pode resultar em impeachment do presidente e na perda dos seus direitos políticos por 8 anos".

Muitos juristas ressaltaram o disposto no artigo 85 da Constituição, que estabelece, in verbis: "São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra: o livre exercício do Poder Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o cumprimento das leis e das decisões judiciais.".

Um ex-ministro do Supremo recorreu a expressão sempre usada pelo próprio presidente do país, ao afirmar que "Não perco a oportunidade pra dizer que é do meu agrado ouvir o presidente dizer que joga nas quatro linhas da Constituição. Acontece que nas quatro linhas da Constituição há dois protagonistas estatais por definição. São os que primeiro entram no campo pra jogar. Por essa ordem, o legislativo e o executivo. E o terceiro que entra em campo é como árbitro, como juiz dessa partida. E o juiz é o poder judiciário. E no âmbito do judiciário, é o Supremo Tribunal Federal, que tanto decide imperativamente, de forma singular ou monocrática, um ministro decidindo sozinho, conforme o caso; pela turma, decisão fracionária; ou pelo pleno, decisão plenária do Supremo. Ora, quando essas decisões são tomadas, o que cabe ao poder executivo é respeitar. As regras do jogo são essas, elas estão na Constituição. Fugir, pra usar de uma linguagem que o presidente vem usando, não é muito do meu agrado, mas eu vou usar dessa linguagem 'enquadrar'. Em nenhum dispositivo da Constituição o presidente da República enquadra o poder judiciário. Menos ainda o ministro do Supremo, menos ainda o Supremo como um todo. Os ministros do Supremo e o Supremo como um todo é que podem enquadrar membros do poder executivo. Isso está na Constituição, isso faz parte das regras do jogo.".

Outro ex-ministro do Supremo entende que "Essa conduta de Bolsonaro revela a figura sombria de um governante que não se envergonha de desrespeitar e vilipendiar o sentido essencial das instituições da República. É preciso repelir, por isso mesmo, os ensaios autocráticos e os gestos e impulsos de subversão da institucionalidade praticados por aqueles que exercem o poder".

Um professor de Direito Penal da fundação Getúlio Vargas criticou os ataques do presidente do país ao sistema eleitoral, tendo afirmado que "Eu fico muito surpreso de ouvir de uma pessoa que se elegeu durante oito vezes por esse sistema, que se elegeu presidente por esse sistema agora diga que esse sistema não funciona. Esse sistema vem funcionando muito bem justamente por conta da Justiça Eleitoral, que é a guardiã desse sistema eleitoral. Descumprir a decisão das urnas, quaisquer que seja ela, também caracteriza um crime de responsabilidade, né. À medida que o povo se manifestar e escolher tomar sua decisão, essa decisão tem que ser respeitada por todos. Você não pode, ao ensejo de questionar o processo, impor a sua vontade".

Em uma síntese bastante simplista, poder-se-ia dizer, ao ouvir a fala do presidente do país, que o Brasil estivesse ainda engatinhando nos meandros da democracia, evidentemente tentando se agarrar em seus tentáculos, como forma de aprendizagem evolutiva, talvez assim se concebesse que seu mandatário ainda pudesse fazer declarações tão distanciadas da realidade da evolução democrática, que somente se consolida por meio do reiterado respeito aos princípios consagrados nos Estatutos jurídicos do país, onde tem por balizamento a exata necessidade do fortalecimento político-democrático, como fazem normalmente as nações sérias, evoluídas e civilizadas, que primam pela consolidação e pelo aperfeiçoamento do seu ordenamento jurídico, posto que ele é a fonte e os pilares de sustentação da organização do Estado.

Ao negar, mesmo que seja somente um dispositivo constitucional, isso demonstra claro sentimento ditatorial do presidente, diante do indiscutível atropelamento de norma jurídica em plena vigência, que a ninguém cabe propugnar pela exceção do seu cumprimento, por livre arbítrio, dando ao entendimento de que o seu poder está acima de tudo, inclusive das leis do país.

É com o sentimento de muita estranheza e preocupação que o presidente da nação tenha tido a indignidade de fazer anúncio com conteúdo o mais deprimente possível, com o propósito de negar validade à norma constitucional, logo em evento onde se comemorava a independência do Brasil, da maior relevância nacional, quando ele poderia ter discursado para os brasileiros levando somente notícias capazes de contribuir para a elevação dos princípios democráticos, em forma de grandeza dos sentimentos patrióticos, ao invés de se referir à ideologia de retrocesso que se traduzem na inferiorização da sua credibilidade como estadista que se dispõe ao ridículo precisamente no Dia da Independência do Brasil.

A única forma democrática de o presidente brasileiro puder declarar que não respeita decisões de ministro do Supremo é alterar o texto constitucional, para que a redação pertinente passe a dizer que o chefe do Executivo pode deixar de cumprir sentença judicial proferida por ministro do STF, porque, do contrário, as declarações anunciadas nesse sentido pelo mandatário, diante da multidão reunida em protesto em apelo por liberdade, podem ser de nítida compreensão demagógicas e ditatoriais, em razão da sua clara dissonância com a norma consagrada no texto constitucional.

Convém sublinhar, a propósito, que o presidente da República jurou, de livre e soberana vontade, acatar, cumprir e defender a Constituição e as leis do país, por ocasião da sua posse, fato este que pode indicar possível quebra de importante compromisso perante os brasileiros, cuja derivação visivelmente golpista prenuncia muitas incertezas quanto às futuras decisões do mandatário, quando o referido ato de desrespeito democrático pode servir para a abertura de seguidas monstruosidades contra o texto constitucional, segundo o princípio de que, por onde se passa um boi, pode perfeitamente passar a boiada.

A absurda decisão presidencial é extremamente preocupante, diante da possibilidade da abertura de perigosíssimo precedente, quando o mandatário passar sistematicamente a desrespeitar o texto constitucional sempre que ele entender que não deva cumpri-lo, por força de conveniência pessoal ou política, fato que pode contribuir, em definitivo, para a consolidação do sentimento ditatorial, que sempre toma por base o primeiro ato e, o pior, sempre sob a alegação de ele ter sido adotado em nome da “democracia” e da “liberdade”.        

Enfim, certamente que os brasileiros gostariam que o Dia da Independência tivesse sido comemorado com o estrito sentimento de patriotismo, como maneira da verdadeira reafirmação da independência em todos os sentidos, inclusive com garantia dos princípios da democracia, da liberdade e do desenvolvimento socioeconômico do Brasil.

Brasília, em 8 de setembro de 2021

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