quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

O império da pistolagem


A presidente da República nomeou uma advogada filha de um ministro do Supremo Tribunal Federal para o cargo de desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que abrange o Rio de Janeiro e o Espírito Santo.
A advogada é especialista em Direitos Tributário e Administrativo e foi a mais votada em lista tríplice enviada pelo TRF-2 à presidente do país, após disputa pelo cargo entre outros dois advogados considerados com maior experiência do que a dela. No meio jurídico, ela tem a reputação de advogada promissora, mas que dificilmente chegaria tão cedo à lista tríplice se o pai não estivesse na Excelsa Corte de Justiça.
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, no ano passado, o pai da advogada a defendeu, tendo alegado, na ocasião, que “Se ser novo apresenta algum defeito, o tempo corrige”.
O ministro manteve contato com desembargadores para tratar da indicação da filha, mas negou que teria pedido qualquer coisa, tendo argumentado que “Jamais pedi voto, só telefonei depois que ela os visitou para agradecer a atenção a ela”. Ou seja, fica muito claro que, com os assumidos contatos com magistrados, houve sim criminoso tráfico de influência nesse questionável episódio, pelo simples fato de que os contatos não teriam sido realizados por simples cortesia, caso não houvesse o interesse dele na nomeação da filha. Tanto isso é verdade, que, por certo, ele não deve ter mantido contato com outros desembargadores alheios ao processo de nomeação da sua filha.
Tudo isso não passa de jogo de cena, na tentativa de justificar o injustificável, quanto mais em se tratando do meio jurídico, onde jamais deveria haver questionamento quanto aos procedimentos dos magistrados, que deveriam se comportar com conduta ilibada e acima de qualquer suspeita, mas, na realidade, sempre há o tráfico de influência e o jeitinho brasileiro das vergonhosas formas de se “levar vantagem” em tudo e da velha e sebosa “pistolagem” nas indicações para cargos no Judiciário.
A situação referente à nomeação em causa é tão ridícula que, em 2013, outro ministro do Supremo, originário do Rio de Janeiro, enviou carta a desembargadores do TRF da 2ª Região exaltando, pasmem, as qualidades excepcionais da filha do seu futuro colega de trabalho, eis que os elogios foram promovidos em fase anterior ao ingresso dele na corte, cuja retribuição pela carta foi feita tempos depois, por meio do comparecimento dela à posse de seu padrinho missivista. Ou seja, não adianta negar a realidade dos acontecimentos, porque os fatos falam por si sós.
Logo em seguida à nomeação em referência, a imprensa nacional registrou o feito com títulos espirituosos, entre os quais os de “Sobrenomes Famosos” e “A Filha da Corte”, naturalmente em deboche à indicação visivelmente arranjada e esdrúxula, para os padrões de moralidade e seriedade que devem imperar nos Tribunais Superiores.
Um famoso jornalista do site da Veja analisou a matéria tela, dizendo que “Já concordei muito com o ministro Marco Aurélio Mello e também já discordei muito dele. O mesmo vale para Luiz Fux. Acredito que as respectivas filhas sejam competentíssimas. Até por isso, dispensam, então, esse amor paternal que extrapola o ambiente doméstico e se estende à vida pública. Com a devida vênia, ministro, um telefonema de agradecimento de um Marco Aurélio Mello tem peso distinto do de outro, feito por J. Pinto Fernandes. Quem é este? Aquela personagem de um poema de Drummond ‘que não tinha entrado na história, um qualquer. Se há Poder que tem de ser e de parecer mais republicano do que os outros, esse é o Judiciário. Até porque é uma espécie de Poder dos Poderes, né? É um “megapoder”, que disciplina a si mesmo e aos outros. Dilma é obrigada a nomear a primeira da lista? Não! Só o faz se quiser. Fica tudo meio incômodo. Restam duas suspeitas: a de que pesou a influência do pai e a de que a presidente decidiu fazer uma deferência a um ministro do STF. O conjunto da obra não é bom”.
À toda evidência, a questionada indicação jamais seria emplacada se a advogada fosse filha de ministro do Supremo Tribunal Federal com tendência contrária ao governo ou se ela fosse apenas filha de J. Pinto Fernandes, aquele da história acima, mesmo que ela seja suprassumo no domínio de matérias jurídicas, mas precisa, nesses casos, que a pessoa tenha QI (quem indica) altíssimo.
A aprovação em apreço reflete exatamente as condições de precariedade e de promiscuidade como são preenchidos, na atualidade, os cargos nos Tribunais Superiores, que têm como critério, entre outros não apropriados, o esdrúxulo poder do “QI”, em prejuízo do sistema do mérito e das qualidades técnico-profissionais intrínsecas dos magistrados, em se tratando do preenchimento de cargo público.
Essa forma bastante questionável de preenchimento de cargos  contraria disposto constitucional que obriga o ingresso no serviço público por meio de concurso público, mediante provas e provas e títulos, e ainda privilegia a desqualificação da estrutura da administração pública, diante da fragilização da independência e da autonomia dos poderes, tendo em vista a influência que o Executivo, aquele que indica, passa a ter sobre o indicado, que fica obrigado, via de regra, a não decidir em contrariedade aos interesses de seus apadrinhados.
Certamente que, nem nas piores republiquetas, ainda se admitem procedimentos tão perniciosos ao interesse público como esse de se nomear com base no DNA do candidato, sem se atentarem, na essência, para as suas qualidades técnico-especializadas e profissionais, tendo em conta possíveis futuras recompensas na condução de processo da administração, como forma de eterna gratidão.
A sociedade, a par de repudiar, com veemência, essa espúria forma de preenchimento de cargo público, por envolver interesse social e a moralidade da administração pública, precisa amadurecer e se conscientizar, com urgência, sobre a pobreza de critério prevalente na administração do país, à vista do caso em comento, na forma como ocorrido, para exigir que as nomeações para tribunais sejam feitas rigorosamente sob o critério do sistema de mérito e preferencialmente por concurso público, conforme estabelece, de modo exemplar, dispositivo da Carta Magna, como forma de assegurar plena legitimidade do processo respectivo, com embargo das espúrias, indevidas e injustificáveis indicações por meio de meras listas tríplices, normalmente preparadas com o peso do apadrinhamento e da pistolagem, absolutamente condenáveis, por representarem a cara do coronelismo e do retrocesso da civilidade. Acorda, Brasil!
ANTONIO ADALMIR FERNANDES
Brasília, em 31 de dezembro de 2015

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