domingo, 1 de janeiro de 2017

O reconhecimento do abuso?

Enquanto o presidente da República falava em “combater a recessão” em evento no Nordeste, houve o anúncio pelo Palácio do Planalto de licitação destinada à compra de alimentos para viagens aéreas dele e de sua comitiva.
O orçamento referente à contratação estabeleceu o valor total de R$ 1,748 milhão, compreendendo diversos itens listados, mas alguns chamaram a atenção para os preços e as quantidades, a exemplo de 500 unidades de “sorvete tipo premium” Häagen-Dazs, 120 potes de creme de avelã Nutella e 500 quilos de gelo seco, entre outros igualmente impressionantes.
O pregão em apreço causou péssima e imediata repercussão no seio da sociedade, o que levou o governo se apressar a cancelar o questionado certame, antes mesmo que os comentários negativos agravassem ainda mais os estragos causados à sua imagem.
Em seguida, o Palácio do Planalto informou que “O presidente Michel Temer, ao embarcar de volta de viagem de trabalho a Maceió, tomou conhecimento da notícia sobre licitação para comissária de bordo para o avião presidencial e determinou seu imediato cancelamento. A determinação presidencial é de que também este serviço tenha seu preço reduzido em relação ao que vinha sendo praticado anteriormente. A mesma instrução vale para todas as aeronaves que servem ao Governo Federal”.
Chega a ser assombrosa a relação dos alimentos indicados no edital cancelado, que previa, pasmem, a aquisição de 200 unidades de café da manhã para o presidente, o “breakfast PR”, no valor de R$ 96,43; a opção de 200 unidades de “breakfast quente”, por R$ 59,00 cada; 500 unidades de “breakfast vip”, por R$ 70,37; 500 potes de sorvetes (Häagen-Dazs); 250 sorvetes de outras marcas; 300 picolés sem lactose de amora e morango; 5 mil cápsulas de café “com referência ristretto (ou produto similar com as mesmas dimensões)”, por R$ 18,3 mil; 120 potes de Nutella, por R$ 34,00 cada um; gelo, por R$ 42 mil; entre outros.
O bom senso sinalizou que a licitação continha realmente algo absurdo e destoante com a realidade do país, que precisava de urgente correção de rumos com relação ao que já era praxe no governo anterior, conforme foi explicado, cuja gestão deixa rastro de exagero nos gastos públicos, à vista de seu reflexo nos rombos causados às contas públicas.
É normal que o presidente do país precise ser muito bem tratado e servido, desde que isso seja feito de forma racional e civilizada, sem abuso nem exagero quanto às quantidades e aos valores dos materiais especificados, por não se coadunarem com a realidade brasileira de crise econômica, em se tratando do mandatário da nação que tem dever cívico e patriótico de ser o primeiro a dar exemplos de austeridade e economicidade, gastando com modicidade e parcimônia, sem prejuízo do eficiente desempenho do nobilitante cargo que ocupa.
Causa estranheza o encarregado de tamanha façanha sequer se roborizar com a aquisição de café da manhã, com o pomposo nome em inglês de “breakfast”, pela “bagatela” de R$ 96,43, em verdadeiro acinte a muitos brasileiros que não dispõem de menos de R$ 1,00 para comprar um pãozinho francês, dando a entender que a farra com o dinheiro público é apenas pequeno detalhe da velha e desgastada República.
Enquanto a seca arrasa a dignidade dos nordestinos, a Presidência da República esbanja dinheiro público para o abastecimento do avião presidencial, com alimentos adquiridos por preços supostamente superfaturados e produtos de primeiríssima qualidade, sem comparação nem mesmo com o primeiro mundo, onde a despesa pública é tratada com seriedade e respeito à realidade do país, mesmo não tendo lá recessão, desemprego nem rombos nas contas públicas, ou seja, crise econômica.
Na realidade, o desprezo à realidade socioeconômica somente acontece nas republiquetas, onde os governantes imaginam que o patrimônio nacional pertence a eles, diante da liberalidade de poder gastar com a aquisição do bom e do melhor para satisfazer os caprichos próprios do poder e da onipotência, que são inerentes a quem não tem a menor preocupação nem zelo para com a coisa pública, principalmente porque eles sabem que o povo não passa de ingênuo, em razão de permitir que os maus políticos permaneçam impolutos nos cargos para os quais tenham sido colocados exatamente pelos bestas dos brasileiros.
Certamente que nem nos países desenvolvidos e com a economia superavitária, alguém ousaria extrapolar o bom senso e a racionalidade, ao adquirir alimentação para abastecer o avião presidencial com tamanha sofisticação e gosto apurado.
Por certo, nem os deuses astronautas mereceriam tratamento tão refinado, com produtos que fazem inveja aos mais requintados paladares da face da terra.
A falta de prudência representada na questionada licitação pode ser uma face dos desmedidos gastos palacianos, que passam a distância do crivo do princípio da economicidade, que jamais deveria deixar de ser observado pelos agentes incumbidos do abastecimento não somente do avião presidencial, mas de tudo que diz respeito às mordomias palacianas, que certamente não passam por rigoroso controle quanto ao princípio da austeridade, à vista das precariedades dos serviços públicos prestados pelo Estado.
Trata-se de afronta à dignidade dos brasileiros, que são obrigados a apertar o cinto, literalmente, enquanto o governo esbanja nas suas mordomias, desprezando o contexto de penúria da nação, onde os orçamentos públicos são deficitários e exigem ajustes de toda ordem, inclusive por parte dos palácios governamentais, que devem ser os primeiros no corte de suas despesas, como forma de exemplo a ser seguido pelo resto da administração do país.
Os brasileiros repudiam, com veemência, o desprezo do Palácio do Planalto à situação deficitária dos orçamentos públicos, que são abastecidos com dinheiro dos contribuintes, mesmo sendo obrigados a passar privações pela péssima qualidade dos serviços públicos prestados pelo Estado, mas o nível das mordomias supera o primeiro mundo, que não teria a petulância de ousar licitar produtos de extremo requinte, totalmente incompatíveis com os serviços de bordo das aeronaves presidenciais, que não precisam do acurado bom gosto nem do exagero custeado com o sacrificado dinheiro do contribuinte.
O presidente do país precisa saber a verdadeira situação de penúria, precariedade, sucateamento da saúde, educação, segurança pública etc., diante da falta de recursos material, humano e financeiro, desde remédios até merenda escolar, em contraste com a fartura do abastecimento dos serviços de bordo do avião presidencial.
Os brasileiros entendem que os serviços de bordo em causa podem existir normalmente, desde que haja estrito respeito ao salutar princípio da economicidade e sejam evitados abusos com recursos públicos, apenas adquirindo o devidamente necessário, em respeito à realidade socioeconômica, que exige modicidade na aquisição dos produtos a serem servidos a bordo.
À toda evidência, o cancelamento da compra em apreço significa o cristalino reconhecimento do abuso com recursos públicos, que seria protagonizado pelo governo, que agora precisa aprender importante lição com o episódio, com vistas à promoção de urgente pente-fino em todos os contratos firmados pela administração pública, de modo a se verificar a sua regularidade, sobretudo quanto à compatibilização de seus objetos, valores, quantidades e demais componentes contratados com as realidades orçamentária e econômica brasileiras, em especial com a finalidade de se corrigir distorções de interpretação e agressões aos princípios da transparência, economicidade e legalidade, entre outros. Acorda, Brasil!
ANTONIO ADALMIR FERNANDES
Brasília, em 1º de janeiro de 2017

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