quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Santo manto?

 

Circula, nas redes sociais, vídeo em que advogados prestam inusitada homenagem ao ex-presidente da República petista, ao entregar a ele uma beca, sob o argumento de que o ato simboliza a pureza da Justiça que existe no político, conforme o texto a seguir.

Aparece, no vídeo, a imagem de vários advogados e um deles se pronuncia, dizendo, ipsis litteris: “Eu queria, neste momento, presidente Lula. Eu tenho aqui uma beca. Esses trajes negros que nós usamos no nosso trabalho nos iguala, nos iguala juízes, promotores e advogados. Esse santo manto, que nós usamos para falar nas cortes é o manto, é o manto, presidente Lula, que você merece, que você merece por significar Justiça, na mais elevada acepção dessa palavra. Eu quero convidar a defensora pública Maíra, para, junto comigo, fazermos entrega dessa beca, símbolo da Justiça, símbolo do que é o presidente Lula, o que nós, com muito amor e carinho, damos para ele agora.”.    

  À toda evidência, trata-se de verdadeiro espetáculo de extremo estarrecimento, por parte das pessoas sensatas e de bom senso, em que a insensibilidade humana mostra a sua verdadeira face, quando grupo de pessoas que se diz ser integrante da classe de advogados e juristas entrega uma beca, que a denomina de “santo manto” para simbolizar, pasmem, o manto da Justiça logo à pessoa do citado petista, como se ele fosse digno desse logo “manto”.

Nada mais poderia causar tamanha perplexidade, tendo em vista que o currículo desse homem público se harmoniza com a autêntica antítese do verdadeiro sentido de Justiça, por ser o político completamente envolvido e implicado com ela, por conta de várias denúncias sobre possíveis práticas de atos de corrupção, cuja autoria é atribuída a ele, por causa de suspeitas de recebimento de propina, que teria ocorrido na sua gestão presidencial.

Os fatos levados à Justiça mostram que o homenageado foi denunciado, em alguns processos, pela prática criminosa de corrupção com dinheiro público, investigado, julgado, condenado à prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro e ainda tendo cumprido parte da pena, justamente por não ter conseguido provar, em nenhum julgamento onde foi condenado pela Justiça, a sua tão propalada inocência, ante à robusteza das provas inseridas nos autos.

A estranheza do estrambótico evento extrapola todos os sentidos da racionalidade, que é própria do ser humano, uma vez que a Justiça trabalha com fatos e estes estão dormitando lá, aguardando as provas a serem apresentadas pelo denunciado.

Ao contrário disso, o político prefere ser alvo de homenagem patética e fantasiosa, que tem o condão de acentuar a sua insensibilidade para com a triste realidade dos fatos, que mostram, de forma cristalina, que ele é político totalmente inviabilizado para fins da prática de atividades públicas, enquanto ele não for capaz de provar a sua inculpabilidade quanto às denúncias existentes na Justiça.

É exatamente assim que procedem os verdadeiros homens públicos, que se dignam à prestação de contas sobre os seus atos na vida pública, de modo que possa ter em seu poder o atestado de ficha limpa e conduta ilibada, sem nenhuma mácula no seu currículo, diante das exigências sobre a observância do princípio da probidade no exercício de cargos públicos, fato este que inexiste na vida desse político, à vista dos fatos constantes em ações penais em tramitação na Justiça.

A entrega da beca a homem público que precisa limpar seu nome na Justiça tem o expressivo significado de acinte, escárnio e deboche à própria dignidade da Justiça, diante do menosprezo evidenciado deliberadamente em forma de cristalina provocação, precisamente por profissionais que militam no Judiciário, que não têm o menor pudor em protagonizar espetáculo ridículo e patético, em demonstração de cumplicidade à falta de ética e à imoralidade, que ultrapassa até mesmo os sentidos da racionalidade e da sensibilidade humanas, à vista da suja ficha pregressa do político homenageado, que não resiste ao crivo da honestidade, à vista dos fatos denunciados à Justiça brasileira.

Causa enorme perplexidade que homens com a larga experiência em advocacia, que manejam diuturnamente com causas na Justiça, versando inclusive sobre casos de corrupção envolvendo recursos públicos, que é o caso implicado pelo político homenageado, não percebam que essa acintosa farsa não condiz com a dignidade de quem trabalho em defesa de causas judiciais, à semelhança dos processos que o arrolam, sob graves suspeitas da prática de atos irregulares.

Diante desse lamentável episódio, de difícil compreensão, resta somente a ilação de que é muito provável que possa haver sim motivação suficiente para justificar tanto ridicularização sobre assunto da maior seriedade, que seja a transformação de pessoa suspeita da prática de irregularidades em herói sem causa alguma e logo fazendo uso de símbolo que foi classificado como “santo manto”, que jamais deveria ter servido como instrumento de importância, em espetáculo tão deprimente e indigno, que denigre a imagem dos verdadeiros advogados, dignos do respeito da sociedade.

Como se trata de forma explícita de escárnio e menosprezo à dignidade dos brasileiros honrados, acredita-se tratar de momento de enorme infelicidade protagonizado por pessoas que se beneficiaram das falcatruas decorrentes de malversação de recursos públicos, que ensejaram, em especial, as investigações sob os cuidados da Operação Lava-Jato.

As aludias irregularidades foram denominadas de petrolão, cujas práticas indignas, devidamente comprovadas, envergonharam o Brasil e o mundo, diante do mar de sujeira que proliferou exatamente no governo do cidadão indevidamente homenageado, à vista da falta de mérito, porque o esquema criminoso de que se trata somente representa a pior imundície na gestão pública e que, por consequência, os envolvidos nele somente merecem eterno esquecimento por parte da sociedade.

Lamenta-se que os advogados sérios e dignos silenciem diante de espetáculo desprezível que somente denigre a imagem da classe, dando a entender que concordam com tamanha indecência em nome de excelsas autoridades no respeitável mundo da advocacia, que merecem o respeito da sociedade, em que pese a protagonismo de evento que somente enlameia a honra tanto dos principais atores como daqueles que comungam com a mesma insensatez.    

Enfim, a verdade é que juristas cometem o sacrilégio de envolver o “santo manto” em ato destinado a laurear cidadão que é denunciado na Justiça, em razão de possíveis práticas de atos criminosos e que não consegue limpar o seu nome sobre as denúncias pertinentes, conquanto isso, a bem da dignidade humana, não condiz com a seriedade que precisa imperar no seio da classe de advogados, de vez que os patrocinadores do deplorável evento em apreço envergonharam não somente seus pares honrados, mas também os brasileiros dignos.

Brasília, em 23 de dezembro de 2021

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