domingo, 3 de abril de 2022

O dever da transparência

 

Uma ministra do Supremo Tribunal Federal negou pedido do procurador-geral da República para arquivar o inquérito contra o presidente da República, no caso referente ao processo da compra da vacina indiana Covaxin, em que ele é investigado sob a suspeita de prevaricação.

O caso Covaxin se tornou centro da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, no Senado Federal, inflamou protestos pelo impeachment do presidente do país e expôs uma série de contradições no discurso dele acerca das vacinas e do combate à corrupção.

A suspeita de prevaricação foi atribuída ao chefe do Executivo por um deputado federal e o seu irmão, este então servidor do Ministério da Saúde, que, em depoimento, afirmaram sobre alerta feita ao presidente do país acerca de supostas irregularidades na compra da Covaxin, negociada com a intermediação da empresa Precisa Medicamentos.

No encontro havido com o presidente do país, que teria ocorrido no dia 20 de março, em conversa presencial, segundo o parlamentar, o chefe do Executivo teria ligado o líder do governo às supostas irregularidades, enquanto o irmão do deputado disse ter sofrido pressão incomum para assinar o contrato para a compra da vacina.

O aludido pedido de arquivamento do processo segue o entendimento da Polícia Federal, que já havia dito que não foi identificado crime, nas investigações, porque não havia dever funcional do presidente da República de "comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento a órgão de investigação.”.

A Polícia Federal concluiu que, "juridicamente, não é dever funcional, decorrente de regra de competência do cargo, a prática de ato de ofício de comunicação de irregularidades pelo presidente da República".

Ao discordar da tese, a ministra afirmou que "é perfeitamente possível extrair, do próprio ordenamento jurídico-constitucional, competência administrativa vinculada a ser exercida pelo Chefe de Governo. Embora a gestão superior da administração envolva, de fato, tal como defende a Procuradoria Geral da República, inúmeras decisões discricionárias, não há espaço para a inércia ou a liberdade de 'não agir' quando em pauta o exercício do controle da legalidade de atos administrativos - ou, mais especificamente, do poder-dever de anular atos contrários ao ordenamento jurídico - e do poder disciplinar em face de desvios funcionais".

A magistrada foi atentou para a precisão no seu parecer, tendo ressaltado, com propriedade, que "Ao ser diretamente notificado sobre a prática de crimes funcionais (consumados ou em andamento) nas dependências da administração federal direta, ao Presidente da República não assiste a prerrogativa da inércia nem o direito à letargia".

A juíza da Suprema Corte afirmou que, nesses casos, o presidente do país deve "acionar os mecanismos de controle interno legalmente previstos, a fim de buscar interromper a ação criminosa - ou, se já consumada, refrear a propagação de seus efeitos. Esses são, portanto, os atos de ofício reclamados, no contexto acima descrito, do Chefe de Governo. Retardá-los ou omiti-los, injustificadamente, 'para satisfazer interesse ou sentimento pessoal', constitui, sim, conduta apta a preencher o suporte fático da cláusula de incriminação prevista no art. 319 do CP".

Impende se observar que não tem sido praxe a negação de pedido de arquivamento de inquérito pelo procurador-geral da República, mas, esse caso, a ministra afirmou que essa hipótese é possível porque houve conduta atípica, com "verdadeiro julgamento antecipado do mérito da controvérsia criminal, atividade inequivocamente inserida nas atribuições do Estado-juiz".

Não há a menor dúvida de que os fatos mostram que o presidente da República tomou conhecimento de fato suspeito de irregularidade no seu governo, que exigia a urgente adoção de medidas saneadoras, em especial, as investigações de praxe, quando se tem conhecimento da prática de atos, em princípio, incompatíveis com a normalidade administrativa, ficando patente que o silêncio dele caracteriza indiferença ao zelo patrimonial.

No caso, mesmo que o presidente do país tivesse absoluta convicção da regularidade dos procedimentos denunciados, o seu dever funcional e legal o obriga a determinar as devidas apurações dos fatos pertinentes, justamente para se verificar e confirmar a lisura, de modo a se cumprir a exigência constitucional da devida prestação de contas à sociedade sobre os atos pertinentes à gestão pública.

Quando a autoridade máxima fica sabendo de possível fato irregular no seu governo e deixa de adotar as medidas cabíveis, fica patente o desprezo aos ditames normativos constantes da cartilha presidencial, podendo, conforme o caso, caracterizar abuso de autoridade, quando a regra manda, como dever ínsito, que se promovam as investigações pertinentes.

O certo é que, não havendo amparo legal para possibilitar deliberada omissão do dever legal, como parece que é a situação aventada nesse caso, o presidente do país, ao deixar de cumprir exigência constitucional, pode ter cometido o crime de prevaricação, como tal previsto no ordenamento jurídico, que ninguém pode desconhecer.

É preciso que fique claro que realmente inexiste dever funcional do presidente da República para "comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento a órgão de investigação.”, quando, na verdade, é da sua obrigação constitucional determinar as imediatas investigações tão logo ele fique sabendo sobre a existência de possíveis irregularidades no seu governo.

Assim, o arquivamento puro e simples do inquérito em causa, na forma proposta nos autos pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, não condiz exatamente com o verdadeiro desiderato que almeja a valorização da gestão pública, uma vez que o salutar princípio constitucional da transparência exige a prestação de contas sobre os atos do governo, com inspiração na legalidade e na correção como conduta a ser seguida pelo verdadeiro estadista, que, como guardião da coisa pública, tem o dever legal de confirmar a regularidade dos atos públicos.

Brasília, em 3 de abril de 2022

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