Uma ministra do Supremo
Tribunal Federal negou pedido do procurador-geral da República para arquivar o
inquérito contra o presidente da República, no caso referente ao processo da
compra da vacina indiana Covaxin, em que ele é investigado sob a suspeita de
prevaricação.
O caso Covaxin se
tornou centro da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, no Senado Federal,
inflamou protestos pelo impeachment do presidente do país e expôs uma série de
contradições no discurso dele acerca das vacinas e do combate à corrupção.
A suspeita de
prevaricação foi atribuída ao chefe do Executivo por um deputado federal e o
seu irmão, este então servidor do Ministério da Saúde, que, em depoimento, afirmaram
sobre alerta feita ao presidente do país acerca de supostas irregularidades na
compra da Covaxin, negociada com a intermediação da empresa Precisa
Medicamentos.
No encontro havido com o
presidente do país, que teria ocorrido no dia 20 de março, em conversa presencial,
segundo o parlamentar, o chefe do Executivo teria ligado o líder do governo às
supostas irregularidades, enquanto o irmão do deputado disse ter sofrido
pressão incomum para assinar o contrato para a compra da vacina.
O aludido pedido de arquivamento
do processo segue o entendimento da Polícia Federal, que já havia dito que não
foi identificado crime, nas investigações, porque não havia dever funcional do
presidente da República de "comunicar eventuais irregularidades de que
tenha tido conhecimento a órgão de investigação.”.
A Polícia Federal
concluiu que, "juridicamente, não é dever funcional, decorrente de
regra de competência do cargo, a prática de ato de ofício de comunicação de
irregularidades pelo presidente da República".
Ao discordar da tese, a
ministra afirmou que "é perfeitamente possível extrair, do próprio
ordenamento jurídico-constitucional, competência administrativa vinculada a ser
exercida pelo Chefe de Governo. Embora a gestão superior da
administração envolva, de fato, tal como defende a Procuradoria Geral da
República, inúmeras decisões discricionárias, não há espaço para a inércia ou a
liberdade de 'não agir' quando em pauta o exercício do controle da legalidade
de atos administrativos - ou, mais especificamente, do poder-dever de anular
atos contrários ao ordenamento jurídico - e do poder disciplinar em face de
desvios funcionais".
A magistrada foi atentou
para a precisão no seu parecer, tendo ressaltado, com propriedade, que "Ao
ser diretamente notificado sobre a prática de crimes funcionais (consumados ou
em andamento) nas dependências da administração federal direta, ao Presidente
da República não assiste a prerrogativa da inércia nem o direito à letargia".
A juíza da Suprema
Corte afirmou que, nesses casos, o presidente do país deve "acionar os mecanismos
de controle interno legalmente previstos, a fim de buscar interromper a ação
criminosa - ou, se já consumada, refrear a propagação de seus efeitos. Esses
são, portanto, os atos de ofício reclamados, no contexto acima descrito, do
Chefe de Governo. Retardá-los ou omiti-los, injustificadamente, 'para
satisfazer interesse ou sentimento pessoal', constitui, sim, conduta apta a
preencher o suporte fático da cláusula de incriminação prevista no art. 319 do
CP".
Impende se observar que
não tem sido praxe a negação de pedido de arquivamento de inquérito pelo
procurador-geral da República, mas, esse caso, a ministra afirmou que essa
hipótese é possível porque houve conduta atípica, com "verdadeiro
julgamento antecipado do mérito da controvérsia criminal, atividade inequivocamente
inserida nas atribuições do Estado-juiz".
Não há a menor dúvida
de que os fatos mostram que o presidente da República tomou conhecimento de
fato suspeito de irregularidade no seu governo, que exigia a urgente adoção de
medidas saneadoras, em especial, as investigações de praxe, quando se tem
conhecimento da prática de atos, em princípio, incompatíveis com a normalidade
administrativa, ficando patente que o silêncio dele caracteriza indiferença ao
zelo patrimonial.
No caso, mesmo que o
presidente do país tivesse absoluta convicção da regularidade dos procedimentos
denunciados, o seu dever funcional e legal o obriga a determinar as devidas apurações
dos fatos pertinentes, justamente para se verificar e confirmar a lisura, de
modo a se cumprir a exigência constitucional da devida prestação de contas à
sociedade sobre os atos pertinentes à gestão pública.
Quando a autoridade
máxima fica sabendo de possível fato irregular no seu governo e deixa de adotar
as medidas cabíveis, fica patente o desprezo aos ditames normativos constantes
da cartilha presidencial, podendo, conforme o caso, caracterizar abuso de
autoridade, quando a regra manda, como dever ínsito, que se promovam as investigações
pertinentes.
O certo é que, não
havendo amparo legal para possibilitar deliberada omissão do dever legal, como parece
que é a situação aventada nesse caso, o presidente do país, ao deixar de
cumprir exigência constitucional, pode ter cometido o crime de prevaricação,
como tal previsto no ordenamento jurídico, que ninguém pode desconhecer.
É preciso que fique
claro que realmente inexiste dever funcional do presidente da República para
"comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento a
órgão de investigação.”, quando, na verdade, é da sua obrigação
constitucional determinar as imediatas investigações tão logo ele fique sabendo
sobre a existência de possíveis irregularidades no seu governo.
Assim, o arquivamento puro
e simples do inquérito em causa, na forma proposta nos autos pela Polícia
Federal e pelo Ministério Público, não condiz exatamente com o verdadeiro desiderato
que almeja a valorização da gestão pública, uma vez que o salutar princípio constitucional
da transparência exige a prestação de contas sobre os atos do governo, com inspiração
na legalidade e na correção como conduta a ser seguida pelo verdadeiro
estadista, que, como guardião da coisa pública, tem o dever legal de confirmar
a regularidade dos atos públicos.
Brasília, em 3 de abril
de 2022
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