sexta-feira, 11 de maio de 2018

Prisão na segunda instância


Em meio à expectativa que se formou em torno da possível redefinição da prisão em segunda instância, discutia-se muito, nos meios jurídico e político, no embalo bem mais próximo de opiniões carregadas de fanatismo político-ideológico do que de pensamentos técnico-jurídicos, como realmente ela precisa que assim possa ser analisada e interpretada, à luz do primado da Carta Magna.
A matéria se encontra no contexto da análise dos doutos ministros do Supremo Tribunal Federal, órgão que já até firmou entendimento sobre a questão, mas há na fila dos julgamentos daquela corte duas ações questionando a constitucionalidade da prisão do condenado na segunda instância, à vista do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal, que reza, verbis: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”.
Como se vê, diante da clareza mediana, o aludido dispositivo trata, de modo particular, da declaração ou da condenação pela Justiça sobre a culpa material do réu, conquanto essa é a maneira mais sábia e inteligente que a Carta Maior do país poderia deixar assegurado aos cidadãos sobre a certeza de somente puderem ser declarados culpados, em definitivo, depois de esgotados os recursos legalmente cabíveis ao caso.
Nem precisa de esforço para se perceber que, no aludido texto, não se menciona proibição de prisão enquanto não houver o trânsito em julgado, o que vale dizer que condenação, culpa e prisão são temas distintos e como tal são e devem ser tratados de forma independente e com a devida atenção que cada um merece e exige, diante da sua importância no contexto prisional.
Em lugar algum da Carta Magna está escrito que o condenado pela Justiça somente será preso depois do trânsito em julgado, o que seria verdadeiro absurdo, por contrastar com o princípio da condenação à prisão, que já deveria ocorrer de imediato e concomitante à sentença judicial, sem mais delongas, como acontece nos países sérios, civilizados e evoluídos, em termos jurídicos, penais e prisionais, ante a existência do direito constitucional da ampla defesa e do contraditório, desde o julgamento na primeira fase judicial, não havendo justificativa plausível para que o condenado não possa recorrer da sentença na prisão decretada na origem.
Como não poderia ser diferente, se os constituintes tivessem a intenção de estabelecer que a prisão do condenado somente ocorrerá depois do trânsito em julgado, haveria dispositivo na Constituição nesse sentido, dizendo que ninguém será preso enquanto não for provada, em definitivo, a sua culpa, como o fez com relação à prisão e à privação da liberdade, nos termos precisos, claros e objetivos de que tratam os incisos LIV, LXI e LXVII do aludido art. 5º, respectivamente, escritos nos seguintes textos: “Ninguém será privado da liberdade ou se seus bens sem o devido processo legal; (...) Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; (...) Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia  e a do depositário infiel;”.  
Nos termos constitucionais, a culpa somente poderá ser decretada com o trânsito em julgado e esse princípio de cunho humanitário faz preciso sentido de ser, porque, enquanto o processo pertinente estiver em aberto, significa que, ao condenado, são facultados todos os meios de recursos legalmente assegurados, mas isso não quer dizer que ele tenha o direito de ficar em liberdade enquanto não houver o trânsito em julgado, caso em que, a depender da morosidade da Justiça, que não consegue dá conta da demanda das ações sob a sua incumbência, seria o mesmo que decretar, por incompetência, a caducidade dos processos e a plena impunidade e liberdade dos condenados, principalmente daqueles endinheirados, que assoberbam seus processos com recursos protelatórios e infindáveis.
A absurda defesa da tese da prisão somente depois do trânsito em julgado, se vencedora, colocariam por terra, ante a inviabilidade jurídica, as prisões preventiva, provisória e temporária, todas previstas na Constituição e ainda sem que haja, para os casos de que se tratam, sentenças condenatórias, bem diferentes da condenação já sacramentada na segunda instância.
Diante disso, percebe-se o gigantesco descabimento da defesa da prisão somente no trânsito em julgado ou até mesmo depois da segunda instância, justamente por investimento com nenhuma razoabilidade de sustentação jurídica para tanto, quando outras prisões, como visto acima, podem ser decretadas antes mesmo da formação inicial de culpa, nos casos considerados acautelatórios ou preventivos, que seriam inviáveis se a prisão já decretada somente fosse possível depois do trânsito em julgado, fato que levaria o Brasil retroceder à era do paleolítico, em termos de sistema prisional.
Vejam-se que a decretação da prisão prevista no inciso LXI, acima transcrito, tem sentido muito incisivo e direto quanto ao seu desiderato, quando estabelece que a prisão deve ser executada em flagrante delito ou de ordem ou sentença fundamentada da autoridade judiciária competente, sem precisar, porque desnecessária, a instância do Poder Judiciário, que fica entendido desde logo como sendo somente da autoridade judicial, inclusive da primeira instância.
Nos países sérios, civilizados e evoluídos, em termos políticos, jurídicos e democráticos, a exemplo da Alemanha, Inglaterra, França, dos Estados Unidos da América, entre outros assemelhados, a prisão ocorre, sem maiores discussões, na primeira instância ou, quando muito, na segunda instância, facultando ao condenado o direito de recorrer dentro da prisão, porque a pena começa a ser cumprida, desde a sentença, como forma natural do pagamento do crime cometido contra a sociedade, daí a imperiosidade da reclusão do criminoso, como forma de se mostrar que o crime não compensa.           
Impende lembrar, em reforço do acerto da prisão em segunda instância, que é exatamente até essa fase que o denunciado dispõe do importantíssimo direito de contestar os fatos objeto do seu julgamento, que tem por base os elementos de prova, coligidos por meio das investigações, perícias e demais apurações sobre as suspeitas da prática de irregularidades, que constituem a materialidade acerca da autoria do crime ou dos crimes, conforme o caso, os quais são apreciados pelo juiz da primeira instância, que tem o dever constitucional de conceder ao réu o consagrado direito de se defender, por meio da contestação, no âmbito da ampla defesa e do contraditório, sobre os fatos consistentes na comprovação da denúncia.
Depois dessa importantíssima fase, com a juntada aos autos das peças de contraprova e os termos das testemunhas ouvidas, com o processo concluído, o juiz da primeira instância está apto a julgar o caso e a proferir o seu veredicto sobre a ação de que se trata.
A outra fase, também de suma importância, se processa na segunda instância, onde ocorre a apelação do apenado, com a apresentação de novo recurso sobre os fatos objeto da sentença prolatada na primeira instância, que será julgado por órgão colegiado, normalmente composto por três desembargadores, que têm a incumbência de examinar os autos, revisar as conclusões da primeira instância, baixar os autos em diligência, para complementação, esclarecimentos ou outras medidas saneadoras, conforme a necessidade do seu pronunciamento definitivo sobre a existência ou não de culpabilidade, cujo veredicto é considerado legalmente definitivo sobre o caso, salvo se surgirem fatos novos ainda não apresentados pelo réu.
Tudo isso para se afirmar que a Constituição e o Código Penal conferem à Justiça de primeira e segunda instâncias a primazia de dizerem, com base no ordenamento jurídico do país, se os elementos constantes dos autos constituem base sólida e robusta para a formação da convicção dos magistrados sobre a culpabilidade ou não quanto à autoria do crime ou dos crimes arrolados nos autos.
Daí a quase certeza da segurança da prisão depois da segunda instância, diante do esgotamento nela da apreciação dos fatos denunciados e das provas apresentadas pela defesa, levando-se em conta a gigantesca improbabilidade da absolvição do condenado, à luz dos fatos julgados, conforme assegura resultado de pesquisa realizada, tempos atrás, pela Coordenadoria de Gestão da Informação do Superior Tribunal de Justiça, dando conta de que somente em 0,62% dos recursos apresentados traduziram na reforma das decisões da segunda instância, para reconhecer a absolvição do condenado, tendo como supedâneo falhas e inconsistências processuais, ou seja, erros judiciais.
Ultrapassada as fases exclusivas, próprias e importantes das provas e dos recursos de defesa, nas primeira e segunda instâncias, caso mantida e confirmada a condenação do réu, resta a ele se dirigir, se quiser, ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal, para, no primeiro, arguir a existência de possível falha processual, indicando a inconsistência dos procedimentos adotados nos autos, na tentativa da anulação das sentenças proferidas nas citadas instâncias.
Vencido na aludida instância, considerada a terceira, o condenado ainda pode recorrer à quarta e última instância, o Supremo, mas apenas na tentativa de demonstrar a inconstitucionalidade das medidas adotadas também nas duas instâncias iniciais, tudo o mais sem que haja a menor possibilidade de modificação das sentenças condenatórias firmadas quanto à culpabilidade do réu, que somente poderiam ser alteradas para declarar a inocência do réu no caso do surgimento de novas provas contrárias aos fatos já julgados.
Ou seja, o reconhecimento de falhas processuais e inconsistência legal podem recorrer para anular o processo, conforme as circunstâncias, mas a culpabilidade sobre a autoria dos crimes permanece intocável, salvo se fatos remanescentes aos já apreciados pela Justiça venham aos autos, que estariam sob a luz do princípio segundo o qual ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado.
Diante do exposto, parece ficar bastante evidente que a prisão na segunda instância melhor atende ao bom senso e à racionalidade, sob o prisma da consistência jurídica, porquanto os fatos denunciados à Justiça já passaram pelo devido e indispensável destrinche, sem necessidade de passar pelo crivo de qualquer outra instância da Justiça, quanto às investigações inerentes ao caso em julgamento, para a busca de provas sobre a materialidade da autoria do crime alegado nos autos, e à apresentação das contraprovas, por meio da ampla defesa e do contraditório, tudo em consonância com o ordenamento jurídico aplicável à espécie.
Poder-se-ia até se alegar que um inocente pode ser preso, por falta de provas, sob o argumento da imperfeição da Justiça, mas essa forma de argumento se torna quase impossível, diante da obrigação funcional de juízes e corpo técnico dos tribunais de terem o cuidado e o zelo da rigorosa  contrasteação dos fatos denunciados com as provas coligidas e juntadas aos autos, mostrando o liame deles com a materialidade da sua autoria, a se justificar que dificilmente a confirmação do julgamento na segunda instância suscitará risco capaz de se permitir que haveria segurança jurídica somente no trânsito em julgado, fato que melhor se evidenciaria a falência do Poder Judiciário, por completa incompetência institucional.
É evidente que há forte pressão veiculada na mídia sobre o relaxamento da prisão na segunda instância, para que ela somente ocorra na instância seguinte, no Superior Tribunal de Justiça, que apenas tem competência institucional para dizer se houve ou não a devida observância aos parâmetros próprios do trâmite processual, sem competência para se pronunciar se a pena aplicada é justa ou compatível com os fatos denunciados.
Isso demonstra tão somente que se trata de argumento com viés absolutamente protelatório, para beneficiar o condenado, por meio dos infinitos recursos legalmente cabíveis, na terceira instância, com farta capacidade para empurrar os autos à prescrição, à impossibilidade do seu trânsito em julgado e ao consequente prêmio da eterna impunidade aos criminosos de colarinho branco, que têm dinheiro suficiente, normalmente fruto de crime, para sustentar as caríssimas bancas de competentes advogados.
Está mais do que provado que o Supremo Tribunal Federal, à luz do disposto no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, que assegura que ninguém pode ser declarado culpado antes do trânsito em julgado, por ser princípio humanitário que possibilita amplas defesas sobre o caso demandado, não precisa ceder às pressões sobre a prisão na segunda instância, eis que o fato de alguém ser considerado culpado, em grau final, não impede que ele não possa ser preso, diante da cristalina indissociabilidade de uma situação com a outra, quanto à falta de previsão constitucional ou legal nesse sentido.
É importante que se privilegie o princípio insculpido no dispositivo supracitado, sem prejuízo do imperioso combate aos crimes contra a administração pública e a sociedade e à impunidade, de modo que seja mantido o importante entendimento do Supremo Tribunal Federal, quanto à observância da obrigatoriedade da prisão na segunda instância, como forma de se assegurar a segurança jurídica e a certeza de que o crime não compensa, no Brasil. Acorda, Brasil!
ANTONIO ADALMIR FERNANDES
Brasília, em 11 de maio de 2018

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