quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Terrível incômodo de consciência!

 

Grupo de militantes contrários ao governo colocou placa em frente ao Palácio do Planalto, sede do governo brasileiro, com a inscrição, ipsis litteris: “Presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa, Michelle Bolsonaro, recebeu 89 mil reais em depósitos de Fabrício Queiroz?”.

Essa mesma indagação motivou o presidente da República a se irritar e ameaçar o repórter do jornal O Globo, chamando outro profissional da imprensa de “otário”, dias depois, demonstrando completo descontrole emocional diante de situação interpretada como sendo absolutamente fora dos padrões da normalidade, nas circunstâncias.

Os militantes também seguravam cartazes com a mesma pergunta e colocaram a placa perto da grade da sede da Presidência da República, mas a segurança pediu que eles se afastassem e ficassem na Praça dos Três Poderes.

Acontece que, após ser perguntado sobre os cheques depositados na conta da primeira-dama, no período de 2011 a 2016, o presidente teria prometido revidar o reporte, quando fez a seguinte afirmação: “Eu vou encher a boca desse cara na porrada”.

Na sequência, ele acrescentou: “Estou com vontade de encher a tua boca na porrada, tá?”, fato este que gerou, em pouco empo, enxurrada de mensagens nas redes sociais, repetindo a pergunta e marcando o perfil do mandatário.

No dia seguinte, em um evento no Palácio do Planalto, o presidente voltou a atacar a imprensa, usando o termo inapropriado de “bundões” para se referir aos jornalistas, afirmando que eles não resistiam ao impacto do Covid-19.

Em cerimônia em Minas Gerais, o presidente novamente se recusou a responder à pergunta referente aos R$ 89 mil depositados na conta da sua mulher, precisamente por ex-assessor da família dele.

Nesta mesma cerimônia, o presidente foi novamente questionado sobre os depósitos na conta da esposa e, mais uma vez, demonstrou insatisfação com a pergunta, tendo esboçado a costumeira estupidez ao responder ao repórter, in verbis: “Com todo o respeito, não tem uma pergunta decente para fazer? Pelo amor de Deus”.

É bem provável que o presidente se mostre incomodado porque o referido ex-assessor é apontado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro como operador de suposto esquema de rachadinha no gabinete de um dos filhos dele.

Em reportagem publicada pela revista Crusoé, foi mostrada a quebra do sigilo bancário do citado ex-assessor, em cujos extratos bancários constam depósitos na conta da mulher do presidente, no valor total de R$ 72 mil, nos anos de 2011 a 2016.

Por sua vez, o jornal Folha de S.Paulo informou ainda que a mulher do ex-assessor repassou o valor de outros R$ 17 mil para a primeira-dama, em 2011, totalizando a quantia de R$ 89 mil, que tanto aborrece e intranquiliza o presidente do país.

Ainda no fim de 2018, depois de o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontar repasse feito pelo mesmo ex-assessor para a primeira-dama, no valor de R$ 24 mil, o presidente informou que era parte do pagamento de empréstimo de R$ 40 mil que ele havia feito para o ex-assessor e que foi depositada na conta da primeira-dama, sob a justificativa de que ele não tinha tempo de ir ao banco.

É bem provável que o principal motivo da indignação do presidente seja pertinente à necessidade de encontrar esclarecimento plausível para o valor que superou o dobro do dinheiro emprestado, sabendo ele que essa primeira argumentação já não tem tanta plausibilidade, exatamente diante da falta de registros pertinentes junto ao Fisco ou documento probante do empréstimo, na forma, por exemplo, de contrato, de modo a respaldar a lisura da operação entre amigos, o que é normal.

A impressão que se tem é a de que nada poderia resultar em aborrecimento se o imbróglio em apreço tivesse ocorrido absolutamente na conformidade da legalidade, onde se lavram em documento apropriado os termos do negócio, dizendo o objeto da operação e o valor envolvido, se R$ 40 mil ou R$ 89 mil, inclusive a forma do pagamento, com ou sem juros, o período e demais informações relacionadas com a transação.

Essa a formalidade precisa, em termos jurídicos, além da obrigatoriedade da devida informação à Receita Federal, justamente para se dizer que alguém recebeu determinado valor, por empréstimo, e se compromete a quitá-lo nas condições quais e tais, indicadas por meio das formalidades combinadas pelas partes.

Na certeza de que o negocio teria sido em estrita sintonia com o empréstimo revestido de regularidade, jamais o presidente do país precisaria entrar em desespero, em tremendo sufoco quando ele é questionado sobre o assunto, que apenas, de maneira educada, civilizada e exemplar, diria que houve uma operação normal entre dois amigos, conforme comprovam os documentos que ele poderia apresentar a quem se interessasse.

Normalmente, essa formalidade de correção e precisão demonstra como o homem pública deve agir, o que se evitaria tamanho constrangimento de precisar ficar envergonhado e extremamente aborrecido em público, fato que não condiz com o comportamento de homem público, diante de mera indagação sobre a origem de dinheiro recebido de pessoa que tem a reputação sendo investigada pelo Ministério Público, fato este que somente tende a afetar a dignidade de autoridade da República, que precisa preservar a imaculabilidade da sua conduta.

Na verdade, a pergunta estava revestia da maior decência, mas a reposta tem todo aparato de indecência e indelicadeza, em se tratando que o presidente do país tem a obrigação legal e moral para esclarecer fatos que condizem com a lisura do homem público, que diz com a necessidade da prestação de contas à sociedade sobre os seus atos como representante do povo.

O certo é que, neste caso, a imprensa apenas procurou cumprir o seu importante papel de bem informar os fatos do dia a dia à sociedade, enquanto a autoridade máxima do país, em demonstração de extremo desespero e desconforto, fica devendo esclarecimentos à nação sobre recebimento de dinheiro que ele não teve como comprovar a licitude da sua origem.

No Estado Democrático de Direito, é obrigação dos homens públicos tratarem os cidadãos com urbanidade e prestarem, de maneira educação e cortês, as informações pertinentes às suas atividades na vida pública, principalmente quando há o envolvimento de dinheiro, que precisa ser evidenciada a sua origem, posto que, do contrário, a dúvida somente contribui para elevar o grau da desconfiança sobre o ato alvo de questionamento, fato este que não condiz com os princípios republicanos.

A dúvida sobre a origem do dinheiro em apreço constitui foto vexaminoso que tem o condão de suscitar o sentimento de que não é bom que o homem público se esquive de explicar a normalmente de seus atos no exercício de cargo público eletivo, porque isso apenas representa maneira incivilizada e não cidadã de prestação de contas à sociedade, preferindo ainda, ao contrário, a compreensão segundo a qual é saudável tentar encher a boca do semelhante de pancada, como se isso fosse a solução natural para resolver o terrível e injustificável incômodo de consciência.

Brasília, em 17 de setembro de 2020

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