O
presidente da República decretou que, verbis: "Fica qualificada,
no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), a política de
fomento ao setor de atenção primária à saúde, para fins de elaboração de
estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a
construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos
Estados, Distrito Federal e municípios".
Após
repercussão bastante negativa, o presidente do país resolveu revogar o decreto
a que se refere a medida, à vista dos temores causados quanto à possibilidade
de privatização dos serviços prestados pelas citadas unidades básicas, objeto
de enorme abalo no setor da saúde pública primária, com gigantesco reflexo no
atendimento à população mais carente.
O
presidente ressaltou que em nenhum momento cogitou privatizar o SUS, uma vez que
"O espírito do Decreto 10.530, já revogado, visava o término dessas
obras (em unidades de saúde), bem como permitir aos usuários buscar a rede
privada com despesas pagas pela União", esclarecimentos estes que não constavam
do documento revogado.
Como
é sabido, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) são a porta de entrada do SUS
(Sistema Único de Saúde), cuja gratuidade à população é prevista no artigo 196
da Constituição Federal, que estabelece: "A saúde é direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
A
secretária especial de PPI, na tentativa de acalmar os ânimos mais exaltados, afirmou
que as parcerias eventualmente derivadas do decreto “manteriam esse sistema
público e gratuito para 100% da população. (...) O que tem é uma vontade muito
grande de usar as melhores práticas de atração de investimentos privados para
prestar serviços melhores".
O
presidente do Conselho Nacional de Saúde (ligado ao Ministério da Saúde) disse que
se trata de "arbitrariedade com a intenção de privatizar as unidades
básicas de saúde".
Alguns
deputados federais já tinham preparado projetos de Decreto Legislativo, na
tentativa de suspender os efeitos do questionado texto, sendo que um deles argumentou
que "a gestão privada na saúde transforma o que é um direito em um
privilégio para poucos, aqueles que podem pagar".
Por
seu turno, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) afirmou que o
decreto deixava "sérias dúvidas quanto a seus reais propósitos.
Preparado sem debate, o texto mistura aspectos distintos, como construção, modernização
e operação das UBS. Por força de lei, decisões relativas à gestão do SUS não
são tomadas unilateralmente. Elas devem ser fruto de consenso entre os níveis
federal, estadual e municipal, sob pena de absoluta nulidade. (...) O decreto
apresentado não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um
modelo de negócio".
Ao
meu sentir, o decreto presidencial demonstra que o governo concluiu que é
completamente incompetente para administrar a saúde pública no seu conjunto, desafio
este que ele entendeu de bom alvitre correr o risco de entregá-la, de maneira
impensada e irresponsável, à iniciativa privada, na esperança de que seja possível
a melhora da prestação dos serviços pertinentes à população.
Ao
conceder a administração da saúde à iniciativa privada, o governo transfere a
sua responsabilidade constitucional para a iniciativa privada, dando a entender
que não pode ser responsabilizado pelas possíveis precariedades, embora os
recursos para a saúde pública vão continuar normalmente, desta feita, sem a gestão
direta do governo.
A
tentativa desesperada e frustrada de privatização de parte da obrigação da saúde
pública, além de ser inconstitucional, permite que o interesse do cidadão fique
à mercê da iniciativa privada, que vai dar prioridade às unidades
potencialmente lucrativas, em total abandono às localidades que somente dão prejuízos,
podendo, por certo, prejudicar grande parcela da população mais carente.
O
decreto presidencial deixou bem evidente que a sua preocupação era viabilizar o
simples descarte de setor da saúde que é fundamental para a população carente,
porque ele lida com os atendimentos primários e de grande importância para os primeiros
atendimentos, sem nenhuma preocupação quanto aos cuidadosos em proteger o
interesse do cidadão usuário do serviço, ante a ausência de definições claras sobre
as atribuições dos entes privados, como forma de se garantir não somente a
gratuidade dos serviços, mas também os cuidados dispensados ao cidadão, em
termos dos serviços de saúde de qualidade.
O
governo mostrou seu total desgaste com a gestão da saúde pública, quando tenta se
livrar dela, sob possível intenção de redução de custo, quando a questão não é mesmo
se gastar menos, mas sim se gastar melhor e com a necessária efetividade, por
meio de melhores controle e fiscalização sobre os trabalhos realmente
executados, porque é notório que o desperdício de dinheiro público nesse setor
deve ser verdadeira farra por parte dos aproveitadores, por causa da ineficiência
e da precariedade do controle por parte do governo.
Ao
lançar, ao que tudo indica, de maneira intempestiva e precipitada, o desejo de privação
das Unidades Básicas de Saúde, o governo demonstra que a sua intenção é se
livrar de serviços cercados de muitas dificuldades de gestão, com tendência a
se acumular com o passar do tempo, exatamente diante da falta de aperfeiçoamentos
e de modernidades do setor, fato que é visível.
Fato
este que tem, necessariamente, tendência para aumento dos inevitáveis custos e desperdícios
naturais, caso nada for feito para a eliminação dessas questões primordiais da
saúde básica, porque não se trata de querer emburrar os gargalos para serem
resolvidos por meio das Parcerias Público Privada, mas sim, repita-se, de se resolver
os obstáculos que impedem o bom funcionamento do sistema, no seu total, de modo
que o acesso aos serviços de saúde pública seja o mais eficientemente possível,
inclusive com ênfase à prevenção, tanto na doença como na oferta de assistência
de boa qualidade, na rede de suporte ao paciente, porque não é garantia que somente
a adoção daquelas parcerias, pelo fato em si, vai ser garantia da melhoria do atendimento
da prestação da saúde pública, quando o sistema carece da excelência da sua
gestão.
Enfim,
o governo, com o mínimo de competência e responsabilidade, já teria tido a iniciativa,
de forma prioritária, não de descartar a sua incumbência constitucional de
cuidar da saúde pública, da melhor maneira possível, mas sim de se preocupar em
torná-la a mais eficiente, em termos de funcionamento, bastando para tanto,
promover completa reformulação do Sistema Único de Saúde, inclusive das
Unidades Básicas de Saúde, de modo a se perseguir a tão desejada eficiência nas
políticas pertinentes.
Brasília,
em 29 de outubro de 2020
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