sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Incompetência administrativa

 

O presidente da República decretou que, verbis: "Fica qualificada, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, Distrito Federal e municípios".

          Após repercussão bastante negativa, o presidente do país resolveu revogar o decreto a que se refere a medida, à vista dos temores causados quanto à possibilidade de privatização dos serviços prestados pelas citadas unidades básicas, objeto de enorme abalo no setor da saúde pública primária, com gigantesco reflexo no atendimento à população mais carente.

O presidente ressaltou que em nenhum momento cogitou privatizar o SUS, uma vez que "O espírito do Decreto 10.530, já revogado, visava o término dessas obras (em unidades de saúde), bem como permitir aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União", esclarecimentos estes que não constavam do documento revogado.

Como é sabido, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) são a porta de entrada do SUS (Sistema Único de Saúde), cuja gratuidade à população é prevista no artigo 196 da Constituição Federal, que estabelece: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

A secretária especial de PPI, na tentativa de acalmar os ânimos mais exaltados, afirmou que as parcerias eventualmente derivadas do decreto “manteriam esse sistema público e gratuito para 100% da população. (...) O que tem é uma vontade muito grande de usar as melhores práticas de atração de investimentos privados para prestar serviços melhores".

O presidente do Conselho Nacional de Saúde (ligado ao Ministério da Saúde) disse que se trata de "arbitrariedade com a intenção de privatizar as unidades básicas de saúde".

Alguns deputados federais já tinham preparado projetos de Decreto Legislativo, na tentativa de suspender os efeitos do questionado texto, sendo que um deles argumentou que "a gestão privada na saúde transforma o que é um direito em um privilégio para poucos, aqueles que podem pagar".

Por seu turno, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) afirmou que o decreto deixava "sérias dúvidas quanto a seus reais propósitos. Preparado sem debate, o texto mistura aspectos distintos, como construção, modernização e operação das UBS. Por força de lei, decisões relativas à gestão do SUS não são tomadas unilateralmente. Elas devem ser fruto de consenso entre os níveis federal, estadual e municipal, sob pena de absoluta nulidade. (...) O decreto apresentado não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um modelo de negócio".

Ao meu sentir, o decreto presidencial demonstra que o governo concluiu que é completamente incompetente para administrar a saúde pública no seu conjunto, desafio este que ele entendeu de bom alvitre correr o risco de entregá-la, de maneira impensada e irresponsável, à iniciativa privada, na esperança de que seja possível a melhora da prestação dos serviços pertinentes à população.

Ao conceder a administração da saúde à iniciativa privada, o governo transfere a sua responsabilidade constitucional para a iniciativa privada, dando a entender que não pode ser responsabilizado pelas possíveis precariedades, embora os recursos para a saúde pública vão continuar normalmente, desta feita, sem a gestão direta do governo.

A tentativa desesperada e frustrada de privatização de parte da obrigação da saúde pública, além de ser inconstitucional, permite que o interesse do cidadão fique à mercê da iniciativa privada, que vai dar prioridade às unidades potencialmente lucrativas, em total abandono às localidades que somente dão prejuízos, podendo, por certo, prejudicar grande parcela da população mais carente.

O decreto presidencial deixou bem evidente que a sua preocupação era viabilizar o simples descarte de setor da saúde que é fundamental para a população carente, porque ele lida com os atendimentos primários e de grande importância para os primeiros atendimentos, sem nenhuma preocupação quanto aos cuidadosos em proteger o interesse do cidadão usuário do serviço, ante a ausência de definições claras sobre as atribuições dos entes privados, como forma de se garantir não somente a gratuidade dos serviços, mas também os cuidados dispensados ao cidadão, em termos dos serviços de saúde de qualidade.

O governo mostrou seu total desgaste com a gestão da saúde pública, quando tenta se livrar dela, sob possível intenção de redução de custo, quando a questão não é mesmo se gastar menos, mas sim se gastar melhor e com a necessária efetividade, por meio de melhores controle e fiscalização sobre os trabalhos realmente executados, porque é notório que o desperdício de dinheiro público nesse setor deve ser verdadeira farra por parte dos aproveitadores, por causa da ineficiência e da precariedade do controle por parte do governo.

Ao lançar, ao que tudo indica, de maneira intempestiva e precipitada, o desejo de privação das Unidades Básicas de Saúde, o governo demonstra que a sua intenção é se livrar de serviços cercados de muitas dificuldades de gestão, com tendência a se acumular com o passar do tempo, exatamente diante da falta de aperfeiçoamentos e de modernidades do setor, fato que é visível.

Fato este que tem, necessariamente, tendência para aumento dos inevitáveis custos e desperdícios naturais, caso nada for feito para a eliminação dessas questões primordiais da saúde básica, porque não se trata de querer emburrar os gargalos para serem resolvidos por meio das Parcerias Público Privada, mas sim, repita-se, de se resolver os obstáculos que impedem o bom funcionamento do sistema, no seu total, de modo que o acesso aos serviços de saúde pública seja o mais eficientemente possível, inclusive com ênfase à prevenção, tanto na doença como na oferta de assistência de boa qualidade, na rede de suporte ao paciente, porque não é garantia que somente a adoção daquelas parcerias, pelo fato em si, vai ser garantia da melhoria do atendimento da prestação da saúde pública, quando o sistema carece da excelência da sua gestão.

Enfim, o governo, com o mínimo de competência e responsabilidade, já teria tido a iniciativa, de forma prioritária, não de descartar a sua incumbência constitucional de cuidar da saúde pública, da melhor maneira possível, mas sim de se preocupar em torná-la a mais eficiente, em termos de funcionamento, bastando para tanto, promover completa reformulação do Sistema Único de Saúde, inclusive das Unidades Básicas de Saúde, de modo a se perseguir a tão desejada eficiência nas políticas pertinentes.

Brasília, em 29 de outubro de 2020

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