quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Terrivelmente deplorável?

 

Tramita no Senado Federal proposta de emenda à Constituição - PEC, versando basicamente sobre a limitação de dez anos para o mandato dos futuros ministros do Supremo Tribunal Federal, que forem indicados pelo próximo presidente da República.

A aludida PEC também sinaliza para a restrição do poder de escolha do presidente do país para as vagas, que passará a ser feita com base em lista tríplice, entre juristas de renome e competência comprovados, de modo que possa ser evidenciado o devido mérito para o exercício de cargo da maior relevância da República.

O autor da presente PEC apresentou a seguinte justificativa: "A vitaliciedade do cargo traz vários riscos à estabilidade institucional. Por essa regra, alguns ministros ocupam a vaga por poucos anos, outros poderão exercer o cargo por décadas".

Embora o presidente do país ainda possa indicar outro ministro para o Supremo, essa escolha ainda estaria dentro das regras atuais, ficando mantida a vitaliciedade no cargo até o titular completar 75 anos, a qual somente seria mudada a partir do próximo presidente do país.

No sistema atual, a escolha do ministro é feita privativamente pelo chefe do Executivo, conforme a práxis, com base tão somente nos critérios de amizade, apadrinhamento, camaradagem, troca de favores e outros que se harmonizem com a conveniência e o interesse do mandatário, ou seja, desde que atenda ao interesse dele, como visto na última indicação.

Foi verificado que a última indicação não fugiu à indecente e à condenável regra, visto que até o filho do presidente, que é senador e tem processo em  tramitação na Corte, participou dela, deixando a evidência de extrema falta de seriedade nessa seleção, em que não será novidade alguma se o novo ministro precisar pagar pelo relevante pedágio, caso em que fica no mesmo, porque tudo passa a ser considerado natural, diante das circunstâncias e do que vem sendo praticado naquele tribunal, diante de decisões que se harmonizam apenas com a ideologia de seus relatores.

A regra que se cogita é de suma importância para se tentar assegurar a segurança jurídica, no sentido de também não se subtrair competência do atual presidente, durante o seu mandato, eis que essa é norma jurídica que precisa ser mantida e respeitada.

Por seu turno, o presidente do país já antecipou seu critério para a escolha do próximo ministro do Supremo, tendo garantido que será brasileiro "terrivelmente evangélico", ou seja, deverá ser indicação absolutamente absurda e sem sentido, à vista, em especial, da existência do princípio republicano da impessoalidade, que tem como pressuposto fundamental a seriedade na administração pública.

A referida regra será inobservada quando o presidente do país já disse que vai indicar integrante de entidade evangélica, demonstrando total parcialidade e beneficiamento indevidos, ilegais e imorais, diante da evidenciação do claro desvio do regramento institucional de que a indicação seja de nome reconhecidamente com capacidade jurídica.   

Não à toa que a garantia de um integrante evangélico no Supremo se torna ainda mais vexaminosa e inescrupulosa diante do sufoco que o presidente teve que enfrentar perante os evangélicos, por meio de violentas pressões, em razão da impossibilidade do atendimento deles nesta última indicação, quando ela foi feita com o beneplácito do famigerado Centrão, que se coalizou com Palácio do Planalto e, pasmem, o presidente da República passou a ser refém desse grupo político, que tem o descrédito da sociedade.

Diante dos fatos inescrupulosos e lamentáveis, fica a impressão de que vai ser muito difícil de o Supremo passar a ter o corpo de ministros confiável, de absoluta credibilidade, enquanto o presidente da República ficar com a liberdade de indicar quem ele bem entender, mesmo que seja pessoa qualificada, porque algum resquício de ruim permanece para o resto da vida, à vista do questionável critério de indicação.

Vejam-se que o evangélico vai ser indicado tão somente para satisfazer a ala a que ele pertence e esse triste fato tem o nome seboso, nojento e pegajoso de jeitinho brasileiro, que foge às salutares regras da seriedade e da moralidade, que precisam imperar como forma de respeito à liturgia da dignidade do ocupante do principal cargo da República e tanto quanto do próprio indicado, que vai carregar para o resto da vida o sinete de que ele somente foi para o Supremo porque é “terrivelmente evangélico” e isso é terrivelmente depreciativo, à luz dos princípios da seriedade e da dignidade profissionais.

O rigor com a seriedade e a moralidade nos atos administrativos é princípio fundamental nas Repúblicas evoluídas e cônscias da sua responsabilidade, que primam pelo respeito ao regramento jurídico pátrio, mas quando o principal agente público vacila em ser cediço ao apelo de entidade religiosa, como faz publicamente o presidente do país, toda seriedade se dilui em pó.

Nada se convence em contrário, mesmo que se “decrete” a inexistência de corrupção no governo, porque não pode haver coisa pior do que a inclinação à satisfação de interesses contrariados, como no caso específico levantado pelos evangélicos, que até eles podem se manifestar normalmente por pressão ao mandatário da nação, no âmbito dos direitos da reivindicação democrática, mas o atendimento ao pleito certamente não atende, à toda evidência, ao interesse público, que é princípio fundamental na República.

Essa forma frágil de gestão pública, de atendimento aos apelos e às pressões de entidades de classe, tem o caráter de extrema fidelidade à falta de seriedade e de zelo para com a coisa pública, diante da intenção de beneficiamento a grupos, em detrimento do interesse público, fato este que tem o visível condão de resgatar as deploráveis práticas da velha política, antes duramente condenadas e recriminadas pelo ocupante do trono presidencial.

É evidente que a falta de seriedade e o explícito descompromisso com a coisa pública, na forma infantilmente declarada pelo chefe do Executivo, quanto à escolha do evangélico, precisam ser repudiados pelos brasileiros honrados, que primam pela dignidade nos atos da República, eis que fica difícil se exigir integridade de caráter e isentos dos membros do Supremo Tribunal Federal, quando as suas indicações são feitas, muitas vezes, sem critério e sem o devido mérito para o exercício do relevante cargo, ou quando a sua indicação é apenas pro forma, para satisfazer exigência de entidade religiosa ou assemelhada, em completa sintonia com os inadmissíveis princípios da esculhambação e da falta de seriedade com a res publica.  

Brasília, em 21 de outubro de 2020  

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