segunda-feira, 12 de julho de 2021

Fora da realidade?

 

Uma das falas da peça dramática de O rei Lear, da lavra do célebre dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) diz o seguinte: “’Desgraçado do tempo em que os loucos guiam os cegos. Faz como eu te digo, ou melhor, faz o que bem entender. O importante é ires embora’, disse o conde Gloucester ao Velho.”.

A aludida peça foi escrita exatamente no período que a peste bubônica voltara a assolar sobre a Europa, no limiar do século 17, obrigando o seu autor a se isolar em quarentena.

Aproveitando a reclusão compulsória, nessa condição, a célebre peça  O rei Lear foi escrita, entre 1605-1606, que passou a ser considerada uma das principais obras literárias desse extraordinário escritor inglês, que, inclusive, fez nela menções à supracitada epidemia, da qual ele fugiu por toda a sua vida.

Especialmente na Londres dessa época, aproximadamente 10% da população morreram por causa dessa infernal peste negra, obrigando o fechamento da cidade e o trancamento em casa dos doentes, nas quais se colocava cruz vermelha pintada na porta, sob rigorosa vigilância.

Como a peça retrata a dramaticidade e a emblematicidade da época de forte pandemia, é inevitável a sua analogia com o mundo atual, onde grassa impiedosamente o novo coronavírus, com as metáforas da “loucura” e da “cegueira” dos brasileiros que teimam em negar o tamanho e a gravidade da desgraça causada pela pandemia, com as suas múltiplas facetas, que são potencializadas pelo indiscutível império do negativismo.

O certo é que a gravidade do negacionismo tem como cerne ignorar os resultados benéficos do isolamento e da vacinação, que mereceram companhas contra as medidas nesse sentido por parte de autoridades que teriam a obrigação de convergirem exatamente em sentido contrário, como  maneira normal de defesa do interesse público.

Se o contágio não foi ainda maior, é precisamente em razão de ter havidos o distanciamento social prudencial e a imunização, como medidas extremamente necessárias e racionais, e jamais porque o vírus simplesmente desapareceu ou quis dar trégua aos brasileiros.

O certo é que se essas duas importantes medidas não tivessem sido adotadas, a tragédia causada pela pandemia do coronavírus teria sido bem maior e com intensidade ainda mais alarmante e trágica.

Por seu turno, os fatos mostram que se tivessem sido adotadas rigorosas barreiras sanitárias em aeroportos, rodoviárias e outros locais de grande fluxo de pessoas, certamente que poderiam ter sido evitados que a variante do vírus originado em Manaus se espalhasse e colaborasse para a segunda onda mais mortal do que a de 2020, permitindo ainda o surgimento de outras mutações e com o número assombroso de mortes somente neste início de ano.

Nunca que os brasileiros podem esquecer e deixar de repudiar a insensibilidade do presidente do país, que, em momento agudo da pandemia, onde a preocupação se agigantava em temor da doença, simplesmente ele repetiu seu inexplicável mantra negacionista, precisamente de que, verbis: “Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando?”.

A propósito, convém que seja ressaltada pesquisa para avaliação sobre Os Perigos da Percepção, realizada pelo instituto Ipsos Mori, que aponta para os brasileiros, pasmem, “como o povo mais fora da realidade no mundo”, fato que é realmente palpável, principalmente diante da sua índole de seguir lideranças completamente desfocadas da realidade sobre os fatos da vida e isso tem muita influência no contexto das relações sociais.

Curiosamente é que a referida pesquisa foi realizada bem antes da pandemia do coronavírus, na qual também consta que o Brasil foi apontado como o segundo país em que as pessoas mais têm a percepção equivocada da realidade, ou seja, são dois importantes indicativos que só demonstram descuido e irresponsabilidade por parte dos brasileiros, cujas consequências só os prejudicam, em termos de bem-estar.  

Os aludidos levantamentos foram realizados em 2018, compreendendo 38 nações, para a avaliação do conhecimento geral e a interpretação que a população faz sobre o país em que vive, cujo resultado mostra que os brasileiros ficaram à frente apenas dos sul-africanos.

A verdade é que, se os mesmos  levantamentos forem feitos agora, com certeza não haverá qualquer surpresa, diante da falta de interesse de os brasileiros em fazerem a coisa certa, tendo por base a realidade dos fatos, em que pese que tudo seria para o seu próprio benefício, se eles agissem com a devida cautela.

Embora o perigo da pandemia do coronavírus seja terrivelmente notório, é impressionante a quantidade de brasileiros que continuam se comportando  normalmente diante da doença, não se importando que o vírus possa não somente bater à sua porta, mas invadir a casa e causar morte, como vem acontecendo uma em menos de um minuto, no país.

A teimosia dos brasileiros não tem limite, quando se verifica que, a toda hora e em qualquer lugar, surgem animadas festas, com aglomerações e muita gente sem máscara, em claro desdenho impulsivo e irreverente à terrível pandemia do coronavírus.

Não se pode negar que a guerra contra a Covid-19 pode causar natural estresse nas pessoas, principalmente para quem já se cansou de permanecer por longo tempo em casa, a ponto se atingir a depressão, mas esse é o único e seguro remédio salvador, à base do obsequioso distanciamento e da milagrosa vacina, sendo que esta ainda pende do atingimento de quantidade suficiente e razoável da população, na compreensão da chamada imunização de rebanho, no bom sentido.

Não tem o menor cabimento que as pessoas fiquem brincando, em plena pandemia de doença letal, com o risco de morte, à vista da falta de cuidados preventivos e do desamor à própria vida.

Enfim, é possível, nos dias atuais, se parodiar o próprio Shakespeare em seu Hamlet, no sentido de indagar: “Ser ou não ser, eis a questão”, como forma necessária de inteligência para se cuidar e preservar a vida própria e de todos contra essa peste terrível Covid-19, o que equivale dizer viver ou morrer, ação que depende da sensibilidade dos homens, em termos de posicionamento contra o negativismo, que jamais poderia ter existido em momento nefasto que os brasileiros pagaram com a própria vida, em aceitá-lo pacificamente, quando deveriam ter tido a inteligência, a sensibilidade e prudência de repeli-lo, de imediato. 

Brasília, em 12 de julho de 2021

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