quinta-feira, 29 de julho de 2021

O sentido da liberdade de expressão

 

Um padre italiano, que mora há mais de 50 anos no Brasil, passou a ser xingado por apoiadores do presidente da República, depois que ele fez severas e infundadas críticas ao governo, durante missa na Paróquia da Paz, em Fortaleza (CE).

No dia 4 do corrente mês, o religioso afirmou que “o governo era responsável pelas mais de 500 mil mortes pela covid-19 no Brasil.”.

Diante disso, segundo a agência Ansa, sete mulheres e um homem invadiram a sacristia para chamar, aos gritos, o religioso de “esquerdopata, comunista, petista”.

Nos próximos finais de semana ocorreriam novas confusões, como no dia 11 seguinte, mesmo sem a presença do padre, um apoiador bolsonarista começou a gritar palavras de ordem, tendo gerado novo incidente.

Uma semana depois, houve nova tentativa de intimidação por grupo vestindo camisas verde e amarelo, com o número 17 às costas.

Segundo o jornal Metrópoles, o grupo invadiu a igreja para atacar o padre, e a missa somente continuou com a presença de duas viaturas da Polícia Militar, para se evitar problema mais grave entre os fiéis.

Um militar disse que “Esse negócio da doutrina dos oprimidos, isso tudo não é para ser praticado aqui. O padre proselitista peca com tudo isso. Vai perder muitos fiéis se continuar nessa linha”.

O governador do Ceará mandou instaurar inquérito, para apurar as ameaças ao padre italiano.

O padre que deu origem à confusão em comento disse que “O Sacerdote e o pastor não podem se calar quando a vida está sendo desrespeitada e violentada”.

O religioso tem toda razão, ao dizer que “o sacerdote e o pastor”, no âmbito do seu trabalho pastoral e de evangelização devem levantar a sua voz, principalmente para denunciarem e pedirem providências das autoridades competentes, tudo em harmonia com a missão própria do seu relevante ofício religioso, no qual não é considerado lícito que haja extrapolação, de forma injustificada, quanto às acusações, que precisam ser modeladas.

A propósito, a acusação feita pelo padre italiano ao governo brasileiro foi muito além de falar sobre desrespeito e violência contra o ser humano, porque ele o acusou de ser “responsável pelas mais de 500 mil mortes pela covid-19 no Brasil”, fato que constitui atitude da maior gravidade, em termos de incriminação, quando, provavelmente, o religioso não deve dispor de provas para justificá-la, na forma da legislação de regência penal.

Ou seja, nos termos da legislação brasileira, constitui crime, por implicação de danos morais, a acusação infundada sobre a prática de ação criminal, tendo em vista que o ônus da prova cabe ao acusador, no caso, o padre, que certamente não tem como provar que o governo seja culpado ou responsável por uma morte sequer, quanto mais por mais 500 mil óbitos.

Não se pode negar, conforme mostram os fatos, que o governo tem sido considerado não muito diligente na aquisição de vacinas, quando a campanha de imunização brasileira somente teve início quase um mês depois de muitos países, certamente governados por políticos conscientes sobre a importância do respeito aos princípios humanitários, terem dado início à vacinação, ainda no final do ano passado, quando o Brasil começou depois de vinte de janeiro, havendo, depois disso, algumas interrupções, devido à falta de doses.

Esse sério transtorno realmente aconteceu, certamente causando graves prejuízos para os brasileiros, que poderiam ter recebido a vacina ainda no final do ano passado, antecipando a proteção da vida, por meio da imunização.

É evidente que o chefe do Executivo protagonizou atitudes contrárias ao efetivo combate à Covid-19, como o desprezo à sua gravidade, ao chamar a doença de “gripezinha”, incentivo a se evitar a máscara, criticar a eficácia de vacinas, inclusive prometendo nem se imunizar e outras negações às orientações preventivas da pandemia do coronavírus.   

Embora esses fatos sejam da maior gravidade, à vista de caso especial de pandemia, em se tratando que o presidente da nação tem a maior incumbência constitucional de ser modelo de práticas cívica e de racionalidade, porque elas podem ter tido influência na negação dos melhores controle e combate à Covid-19, não se dispõe, nem por isso, de elementos seguros e de convicção no sentido de que o governo tenha contribuído para determinada quantidade de mortes, a ponto de possibilitar acusação nesse sentido, exatamente por falta da prova material da conexão dos atos dele com algum óbito, para a devida formalização de culpa, que é a essência para a sustentação da acusação pertinente, com vistas à responsabilização pela prática de crime.

Por sua vez, não tem o menor cabimento que apoiadores do presidente do país possam tomar as dores dele, como quem pretendendo fazer justiça com as próprias mãos.

Nesses casos, o bom senso e racionalidade aconselham que o caminho normal, nos termos da legislação brasileira vigente, se faça por via da Justiça, por iniciativa da parte ofendida, que pode exigir que o religioso prove a sua acusação, evidentemente sem necessidade alguma de agressão a ele, porque não se justifica que a prática de erro seja revidada com outro insensato erro, tendo em vista que existem os meios legais para serem buscados a devida reparação, tudo em harmonia com os princípios da civilidade, da racionalidade e da humanidade.

Enfim, todo cidadão tem direito de se manifestar, sob a faculdade do Estado Democrático de Direito, no âmbito das liberdades individuais, podendo expressar seu sentimento em oposição ao que achar de anormal ou negligente, no caso das políticas públicas, em especial no que se refere ao combate à grave crise da pandemia do coronavírus, por se tratar de realidade notória, quando o governo poderia ter sido muito mais ativo e efetivo com relação à prestação da saúde pública sob a sua incumbência constitucional.

Agora, é muito forte se afirmar que o governo seja responsável por mais de 500 mil mortes causadas pela Covid-19, quando isso parte apenas, ao que parece, do sentimento próprio da arraigada e irresponsável ideologia, cujo autor precisa sim ser responsabilizado por acusação carente de fundamentação fática.

O caso em referência tem ainda a gravidade de a acusação partir exatamente durante a missa realizada em Igreja Católica, que compreende ato religioso destinado, em princípio, à pregação do Evangelho de Jesus Cristo, que tem como exclusivo pensamento causas relacionadas com a espiritualidade e o cristianismo, sem qualquer necessidade da sua mistura com assuntos políticos, quanto mais com conotação ideológica, em completo desvio da finalidade religiosa.

Convém que os brasileiros se conscientizem de que a liberdade de expressão é princípio democrático valioso e da maior importância para o engrandecimento da cidadania, que precisa ser valorizada por meio do seu uso ponderado, em termos de equilíbrio e responsabilidade, não se permitindo, por questão de respeito aos direitos humanos, acusações graves que não possam ser comprovadas, sob pena de se incorrer em crime por danos morais à imagem de pessoas.

Brasília, em 29 de julho de 2021

Nenhum comentário:

Postar um comentário