domingo, 20 de março de 2022

Monumental trapalhada?

 

A Advocacia Geral da União decidiu construir estratégia visando à derrubada da decisão do Supremo Tribunal Federal que suspendeu o aplicativo de mensagens Telegram, no Brasil, que tem sido um dos principais canais utilizados pelo presidente da República e seus aliados.

O órgão solicita que o Supremo determine que as penalidades previstas no Marco Civil da Internet – norma que fundamentou a decisão de suspensão – não podem ser impostas por inobservância de ordem judicial – como ocorreu no caso do aplicativo russo.

A AGU argumenta, como principal fundamento que as sanções previstas no Marco Civil da Internet são de natureza administrativa e não poderiam ser aplicadas em âmbito judicial, tendo sustentado que as penalidades de “suspensão temporária das atividades e proibição de exercício das atividades”, previstas na lei, estão ligadas às infrações dos deveres de “garantir respeito aos direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”.

A advocacia sustenta ainda que “Daí porque sanções podem ser aplicadas a provedores de conexão ou aplicações de internet (como o Telegram e o Whatsapp) se eles não respeitarem o sigilo das comunicações, se fizerem uso indevido dos dados pessoais, mas não (pelo menos com fundamento no Marco Civil da Internet) por descumprirem uma ordem judicial”.

Com relação à decisão de suspensão do Telegram, a AGU argumentou que “eventual conduta antijurídica, que se imputa a investigados pela corte máxima, não pode reverberar automática e indistintamente em banimento de todos os demais usuários do serviço que se pretende suspender, sob pena de claros prejuízos”.

Por último, aquela advocacia alega que “Os consumidores/usuários de serviços de aplicativos de mensagens não podem experimentar efeitos negativos em procedimento do qual não foram partes. Pensar diferente, a um só tempo, ofenderia o devido processo legal, com antijurídica repercussão do comando judicial em face de terceiros, além de ofender, ao mesmo tempo, o princípio da individualização da pena. In casu, pois, inequívoca a desproporcionalidade da medida que, para alcançar poucos investigados, prejudica todos os milhões de usuários do serviço de mensagens”.

A decisão que suspendeu o Telegram atendeu pedido, segundo o ministro, formulado pela Polícia Federal, em razão da reiteração do descumprimento, pela plataforma, de decisões judiciais, além da dificuldade de comunicação com a empresa, que não tem representante no Brasil.

O ministro ressalta que  o Telegram não atendeu aos comandos de decisões do Supremo, em evidente demonstração, segundo ele, de “total desprezo à Justiça brasileira”, cujo desrespeito “é circunstância completamente incompatível com a ordem constitucional vigente’, fato este que contraria o Marco Legal da Internet, que todas as plataformas são obrigadas a observarem, sob pena de sanção, como a de suspensão, na forma estabelecida pela corte.

O aplicativo ignorou determinações tanto do Supremo como do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, sendo que este desenvolve uma série de estratégias para combater a desinformação nas eleições deste ano.

Na ação apresentada ao Supremo, a AGU pediu ao Supremo que fixe entendimento sobre disposição específica do Marco Civil da Internet, usado como base para esta última decisão.

O trecho estabelece sanções para aplicativos que não atenderem às determinações judiciais quanto à disponibilização de conteúdos de usuários, entre as quais se insere a que possibilita a suspensão das atividades da plataforma.

Em síntese, o pedido em referência tem como argumentação essencial a tentativa de mostrar que o Marco Civil da Internet não pode ser aplicado para bloquear aplicativos que não cumprem as ordens judiciais, que a legislação só pode ser aplicada após processo administrativo e não no âmbito judicial e que o procedimento que gerou o bloqueio do Telegram se refere a pessoas específicas, que não poderia ter reflexo sobre outros usuários do aplicativo, por não terem relação com o caso.

Não há a menor dúvida de que milhões de usuários da internet foram prejudicados em razão da suspensão do Telegram, quando somente há o envolvimento de poucos casos considerados irregulares, o que poderia se sugerir a aplicação de medidas alternativas, sem interferência no direito dos demais usuários, que realmente não cometeram qualquer infração e, por isso, não poderiam ser igualmente punidos junto com os pecadores.

Ocorre que a questão é bastante complexa, porque o que está em jogo também é, em especial, a regularidade de funcionamento da plataforma no país, que sequer tem representação no Brasil e a lei de regência exige a obrigatoriedade dessa medida, tal como fazem normalmente as demais empresas provedoras de serviços similares.

Agora, em se tratando de decisão judicial que não diz absolutamente nada com os interesses diretos do governo, por se tratar de interpretação sobre dispositivo referente ao Marco Civil da Internet, com relação à prestação de serviços de ordem social, é totalmente descabida e despropositada a interferência dele nesse caso, em especial porque não se trata de plataforma de uso oficial do Estado.

Nesse caso, não cabe a presença do governo, precisamente por falta de amparo legal, posto que qualquer questionamento ou interferência por parte dele é totalmente indevida, por falta de motivação legal, o que se recomendaria o direcionamento das suas preocupações para tratativas de importantes questões relacionadas com as políticas específicas da sua alçada.

A toda evidência, se o Supremo quiser, pode até alegar exatamente ausência de competência legal para nem apreciar o pedido da AGU, que nem chega a ser deselegante, conquanto o caso pende da regularização da empresa no país e de cumprimento de decisões judiciais por parte do Telegram, que tem estrondoso uso dos seus serviços no Brasil, mas se trata, em princípio, de plataforma completamente clandestina, não tendo a quem se dirigir, no caso da necessidade de comunicação, tanto no interesse da administração como dos usuários, diferentemente de outras plataformas similares, que cumprem fielmente a legislação aplicável à espécie.

A verdade é que, com o mesmo pensamento nefasto das principais autoridades contrárias à regularização do funcionamento do Telegram, no Brasil, as pessoas somente enxergam os seus interesses, mas convém, sobretudo, se atentar para o que foi afirmado pela Polícia Federal sobre essa plataforma.

Esse importante órgão de governo disse que o Telegram “é notoriamente conhecido por sua postura de não cooperar com autoridades judiciais e policiais de diversos países, inclusive colocando essa atitude não colaborativa como uma vantagem em relação a outros aplicativos de comunicação, o que o torna um terreno livre para proliferação de diversos conteúdos, inclusive com repercussão na área criminal.”.

Em termos de responsabilidade cívica e seriedade administrativa, as informações da lavra da Polícia Federal são da maior importância para quem tem compromisso público de fidelidade aos princípios de conduta, mas o governo simplesmente é o primeiro a contrariá-los, vindo, mais do que imediatamente, a bater as portas do Supremo, em defesa da continuidade da esculhambação e da desorganização, em termos do descumprimento da legislação brasileira.

À toda evidência, o governo comente grosseira trabalhada, com o misto da sua peculiar e notória incompetência, ao se imiscuir em assunto que, em absoluto, não é do interesse dele, uma vez que os proprietários do aplicativo precisam atender à Justiça Brasileira, com vistas ao saneamento das questões irregulares.

É mais do que deplorável que o governo se preste a atuar em cenário onde, claramente, não lhe diz respeito e a sua participação nessa questão somente conspira a favor de interesses visivelmente estranhos à sua finalidade de defesa exclusivamente do Estado.

Se o Brasil primasse pela regularidade dos procedimentos, tendo o devido cuidado de zelar pelo fiel cumprimento da legislação pátria, nesse caso, o governo deveria ser o primeiro a apoiar em abono às determinações do Supremo, mesmo que tenha havido prejuízo para os usuários inocentes, mas a medida visa exatamente permitir que o Telegram passe a cumprir a legislação pertinente ao seu funcionamento no país, bem assim as decisões judiciais que foram ignoradas por ele

Essa cristalina barbaridade praticada pelo governo é algo que certamente não ocorre nos países sérios e evoluídos, principalmente naqueles que primam pela seriedade e normalidade quanto ao funcionamento das empresas estrangeiras, inclusive de comunicações, que precisam sim cumprir fielmente a legislação brasileira, em especial, no caso, das decisões judiciais e a indicação do seu representante legal, para fins dos necessários contatos tanto dos usuários como dos órgãos de controle e fiscalização.    

Enfim, espera-se que essa desagradável situação seja saneada da melhor maneira e o mais rapidamente possíveis, de modo que os interesses e os direitos constitucionais dos brasileiros e poderes constituídos sejam devidamente preservados, como forma do necessário atendimento ao bem comum, sobretudo em harmonia com a legislação brasileira.

Brasília, em 20 de março de 2022

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