terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Questionável cessão de área pública

Conforme reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo, o Ministério Público solicitou à Justiça a anulação da cessão de terreno do Município de São Paulo para instalação de museu em homenagem ao ex-presidente da República petista. A área de 4.300 m², que fica no centro da capital, foi destinada, em 2012, para criação do memorial sobre o ex-presidente, na gestão do anterior prefeito ao atual. Por enquanto, ainda não foi iniciada a construção de obras no local. A ação civil pública argumenta que a cessão do terreno configura privilégio ilegal, porquanto "Nesse espaço ocorrerá a divulgação da imagem do ex-presidente Lula, que ainda está em intensa atuação política. A destinação da área para o memorial fere o interesse público, pois faltam espaços no município para a instalação de estabelecimentos como escolas e creches.”. Segundo o jornal, já foram construídos na capital, com recursos privados, dois espaços do Instituto Lula, no bairro do Ipiranga (zona sul), os quais são usados pelo ex-presidente para fins políticos e guarda de acervo sobre o ex-presidente. O Instituto Lula, a par de não comentar o pedido em apreço, alegando que não teve acesso a ele, disse que o museu servirá além da guarda de objetos sobre o ex-presidente, para mostrar a história dele pela democracia no Brasil. Em princípio, o pleito do Ministério Público encontra-se absolutamente respaldado não somente na remansosa jurisprudência dos Tribunais Superiores do país, mas em especial na constituição e nas leis vigentes, ao disciplinarem que a cessão de uso de bem público consiste, basicamente, no empréstimo ou na transferência provisória e gratuita da posse de um imóvel, edificado ou não, pertencente a um órgão público, cedente, a outro, de mesmo nível de governo ou de nível diverso, com vistas a possibilitar ao cessionário a utilização institucional ou de interesse público. Impende se observar que o instituto da cessão não se confunde com concessão, permissão, autorização de uso nem doação. A figura fundamental e marcante da cessão é a sua significante restrição de poder ao cedente em favor do cessionário sempre em razão de interesse público, motivo pelo qual se exige que, na operação pertinente, seja observado primacialmente o princípio da legalidade. A cessão tem como essencial característica somente se processar apenas entre entes públicos, não sendo permitida entre poder público e particular, como deve ter ocorrido no caso do ex-presidente petista, que é considerado, nesse caso, particular. Segundo o administrativista prof. José dos Santos Carvalho Filho, a “Cessão de uso é aquela em que o Poder Público consente o uso gratuito de bem público por órgãos da mesma pessoa ou de pessoa diversa, incumbida de desenvolver atividade que, de algum modo, traduza interesse da coletividade.”. Em que pese a finalidade clássica do instituto seja a cessão de bem público a pessoa jurídica de direito público, a doutrina admite, em casos excepcionais, a possibilidade da cessão gratuita de bem público a pessoa jurídica de direito privado que desempenhe atividade não lucrativa e tenha por objeto beneficiar a coletividade, que parece também não ser o caso do ex-presidente, que não se mostra muito afeito a favorecimentos senão a si próprio, como se verifica no caso da utilização de duas edificações em seu nome, que são destinadas a reuniões e encontros políticos, praticamente envolvendo negociações político-partidárias, sem nenhum benefício à coletividade. No que se refere à cessão em comento, há fortes indícios de que ela não se enquadra na essencialidade legal do atendimento ao interesse público, tendo em vista que o terreno em causa teria realmente emprego legal se fosse destinado à satisfação de finalidades essencialmente públicas, a exemplo da construção de escola, hospital, creche, delegacia ou outra entidade que pudesse representar o real e efetivo desenvolvimento de atividades de interesse da sociedade, fato que certamente não ocorrerá com as obras do ex-presidente petista, que já demonstrou que sabe muito bem cuidar dos interesses estritamente pessoais. Causa enorme perplexidade se constatar que os homens públicos não têm o menor pudor de se apoderar, de forma injustificável e ilegal, de bens públicos, em proveito próprio, como se isso não representasse grave ofensa aos salutares princípios da moralidade, da legalidade, do decoro e da conscientização de que o uso de bens públicos não deve ser senão em benefício da população, como forma legal de satisfazer a sua precípua finalidade de res publica. Convém que haja total desprezo às cessões arranjadas mediante influência política, sabidamente para o atendimento de meros interesses pessoais. Não somente o Ministério Público, mas especialmente a sociedade também deve fazer coro contra a impudência dos atos praticados pela administração pública, porque em completa desarmonia com o regramento jurídico e os princípios democráticos, a exemplo dessa cessão de terreno em área nobre da capital de São Paulo, que deveria se destinar à sua verdadeira função de interesse público, em consonância com a forma legalmente preconizada. Acorda, Brasil!
 
ANTONIO ADALMIR FERNANDES
 
Brasília, em 20 de janeiro de 2014

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