sábado, 23 de maio de 2020

O vídeo diz que...


O vídeo da bastante desajeitada e virulenta reunião ministerial de 22 de abril pode não ter sido a morte esperada do presidente da República, mas ele tem elementos que podem sim contribuir, em termos jurídicos, para tirar o sono dele, porque há afirmações ali que se juntam a outros fatos cujo resultado pode servir para a receita capaz de complicar a paz dentro do Palácio do Planalto, quanto à denúncia de interferência política na Polícia Federal.
Na verdade, não há, no vídeo, declaração flagrante e concretamente do presidente de que interferiria na Polícia Federal, para desviar a sua missão institucional, fato que levaria à conclusão da investigação no sentido de denunciá-lo pela prática de crime.
Em circunstâncias normais, o presidente da República tem prerrogativa para mudar todos os cargos do Executivo, o que significa dizer que, sob o aspecto jurídico, não faria sentido ele fazer pressão para trocar o superintendente da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, salvo se houvesse motivação estranha ao interesse público.
A despeito disso, o presidente construiu história sem pé nem cabeça acerca da referida mudança, sob a justificativa de que não conseguia fazer trocas “na segurança no Rio”, em relação à equipe que cuida da sua proteção pessoal, que foi entendida como sendo com relação à Polícia Federal, mas essa versão não se sustentou, diante de fato incontestável, segundo o qual, no mês anterior à reunião de 22 de abril, precisamente em março, a equipe de segurança do presidente, naquele estado, teve trocas importantes e que não seriam aquelas reclamadas por ele, em que também não houve qualquer empecilho para tanto.
As mudanças aconteceram normalmente, na segurança pessoal do presidente, pelo reconhecido mérito da qualidade do trabalho dela, em que houve premiação do comando, que foi promovido, fato este que põe por terra a alegada insatisfação por não gostar do trabalho da equipe e precisar mudar.
Na verdade, a insatisfação tinha endereço certo, que era exatamente a Superintendência da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, diante da necessidade de se proteger, nas palavras do presidente, familiares e amigos, que, pelo menos nesse último caso, não tem direito à proteção pela segurança pessoal, que é feita por corporação diferente da Polícia Federal.
Consta do vídeo que o presidente chegou a dizer: "Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira.".
Ou seja, a investigação precisa provar ou não se a mudança do superintendente da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, era objetivo do presidente de transformar a corporação em mera extensão dos interesses políticos ou pessoais dele, com a nomeação de pessoa da sua confiança.
Ainda cantando vitória, por entender que o vídeo não tem nada que o incrimine, o presidente do país mencionou episódio que teria sido desbaratado por amigos policiais, agentes do país que passam informações para ele, de modo informal, tendo explicado que essa é a misteriosa “segurança particular” que foi mencionada no vídeo, com mais eficiência do que a dos órgãos do governo.
A citada situação policial teria acontecido na casa de um de seus filhos, engendrada por meio de busca judicial, onde falsas provas teriam sido plantadas no local e o presidente se veria refém de chantagens.
Diante dessa situação, o presidente disse que chamou o então ministro da Justiça às falas e pediu que ele o protegesse, tendo afirmado: “Ele tem o dever de me defender”, a despeito de a segurança dele seja feita pelo Gabinete de Segurança Institucional.
Não resta a menor dúvida de que o relato desse episódio evidencia prova indiscutível do desejo de instrumentalização da Polícia Federal, de maneira indevida, em razão de a proteção do presidente ser da incumbência do citado gabinete e não do Ministério da Justiça, onde a PF é subordinada, e esse fato é de grande importância para as investigações, diante da tentativa de requisição do presidente de segurança particular, em evidente desvio de finalidade.
Na realidade, o vídeo mostra que o presidente fervia da cabeça aos pés de raiva e exigia o máximo dos ministros, em forma de combatividade e por meio de mais ações políticas, sendo que o ex-ministro da Justiça merecia cuidado especial em fora de irritação.
Fica patente que o presidente tinha por alvo o ex-ministro da Justiça, quando cobrava de seus assessores mais preocupações com seus afazeres e com a defesa da imagem dele, ao dizer: “tirem a cabeça da toca”, para defendê-lo na imprensa, e “Tem que fazer a sua parte!”, com os olhos voltados para o lado onde estava o então ministro, para quem também olhava quando avisou que vai intervir em qualquer ministério, se achar necessário.
Por fim, o presidente se volta para o ministro da Justiça. no exato instante quando pronuncia a palavra “intervir” e isso é bem visível.
O conjunto dos demais atos constantes do vídeo da malsinada reunião diz muito sobre a pobreza e a baixaria nas falas do presidente brasileiro e de alguns ministros, evidenciando deplorável e decadente nível de pessoas seletas que estão representando a nação brasileira, mas nesse ato houve a exposição da solidariedade de autoridades públicas, em demonstração inequívoca e despudorada de dizer, a um só tempo, tudo que jamais deveria ter sido sequer pensando, quanto mais dito, em razão da relevância de seus cargos e em respeito à dignidade dos brasileiros.
O mais grave de todo triste e deplorável episódio é que a predominância dos palavrões, embalados com ameaças e insinuações foi a tônica da reunião, com destaque para o cacique-mor, que se irritava por trás de suas contundentes afirmações e em momento algum se viu, por parte dele, nenhuma trégua em ponderação e respeito nem mesmo como cidadão, como mando a liturgia do relevante cargo de príncipe da República.
Em reunião de aproximadamente duas horas, quase nada se ouviu sobre atos próprios e especiais da governança e, pior ainda, sobre medidas efetivas pertinentes à gravíssima crise da pandemia do coronavírus, que teria sido excelente oportunidade para o presidente se ocupar, de forma prioritária, para levar ao importante encontro ministerial ideias sobre estudos, estratégias e outros temas inerentes ao combate a essa praga que mexe e atanaza diretamente a vida dos brasileiros.
Não obstante, o presidente aproveitou o ensejo para tecer “importantes” considerações sobre a necessidade de armar os cidadãos, com a preocupação de se evitar o surgimento de ditaduras.
Também, diante da relevância dos assuntos discutido na reunião, o nobre ministro da Educação houve bem destilar seu ódio por Brasília, afirmando que aqui é a terra de bandidos e corruptos, e ainda achou interessante e ideal o momento para dizer a sua vontade de mandar para a cadeia os “bandidos do STF”, tudo em ambiente onde não faltou quem pretendesse processar e prender governadores e prefeitos que recomendam o isolamento social, mostrando, com esse sentimento, desprezo à vida humana, visto que o confinamento é forma desejável de se evitar contágio dom o coronavírus.
Enfim, a reunião de abril de 2020, carregada de nuvens cinzentas, como visto, certamente ficará marcada nos anais da história brasileira como o dia em que os cabeças pensantes da República aproveitaram-na para demonstrar a parte folclórica da gestão pública, onde se viu um pouco de muitos palavrões, acusações, ameaças, enquanto a grave crise da pandemia do coronavírus se alastrava com força e impiedosamente sobre a população, mas nenhuma medida foi apresentada nem discutida, no encontro, acerca do seu efetivo combate, o que bem demonstra o completo desinteresse na solução dessa tragédia por parte das autoridades governamentais.
Brasília, em 23 de maio de 2020

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