segunda-feira, 4 de maio de 2020

Ponto de vista


Às vezes, tenho larga impressão de que, na "melhor idade", passei a viver em outro planeta e me atenho ainda ao caso específico do afastamento do então ministro da Justiça, por razões de incompatibilidade entre autoridades da administração pública, exatamente porque houve a ruptura da harmonia entre elas, com a extinção unilateral do acordo consistente na concessão de carta branca, levando à automática perda de confiança entre ambas, em ambiente absolutamente normal.
Deduz-se disso que as discussões deveriam ser travadas pela sociedade estritamente sobre esses fatos que, por si sós, já são relevantes, mas o que se constata é que múltiplos outros assuntos, que não têm quaisquer ligações com ele, se somaram em dimensão fantástica e, o pior, de maneira apaixonada, como se, de repente, o mundo tivesse vindo abaixo, ao que parece, na tentativa de justificar algo absolutamente fora do contexto, inclusive tendo gente muito inteligente e entendida dos meandros da política e da administração pública tentando, por meio de tratado, apascentar o rebanho bolsonariano.
Não obstante, foi deixado à margem a análise do problema propriamente dito, que, diante das sábias opiniões, poderiam, certamente, contribuir para dirimir o imbróglio jurídico e trazer à vida a tão sonhada pacificação de ânimo por parte de muitos que fazem questão de julgar e condenar apenas, aparentemente, por questão ideológica, na defesa cega da parte que não gostaria que tivesse a sua reputação prejudicada.
Imagino que toda essa discussão em defesa do presidente é apenas tentativa de não se aceitar a realidade, qual seja, a de que o presidente não tolerava mais continuar com o status quo, em que, como foi declarado por ele, segundo as palavras ditas pelo ex-ministro, que "o chefe do Planalto manifestou o desejo de ter um diretor-geral com quem pudesse manter contato pessoal e conseguir acesso a relatório de inteligência que correm sob sigilo", tendo o ex-ministro concluído que ele "não poderia compactuar com tal medida" (Correio Braziliense de 26/04/, página 2).
A verdade é que os ministros não podem ser descartados sempre quando houver necessidade de adequação de interesse pessoal do mandatário, como parece ser o caso em discussão, em que o presidente pretendia nomear pessoa da confiança dele que chefia outro órgão importante, sob a indicação de um filho dele, mas agora se cogita também a nomeação do titular da Justiça por alguém também da confiança palaciana, o que só demonstra a intenção nada republicana da gestão pública, evidentemente se tudo isso se confirmar, à luz dos princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade, legalidade e transparência.
Espera-se que essa anomalia administrativa não venha a se efetivar, porque seria apenas a confirmação de que a Polícia Federal, em especial, passaria a ser revestida do comando sob caráter pessoal, em que o presidente poderia acompanhar e conhecer os trabalhos e os relatórios, conforme ele disse que é normal ter acesso às informações produzidas por outros órgãos da administração federal, o que não vinha sendo possível até o momento, naquele órgão, mas a precipitada mudança, sem que fosse declinado nada como justificativa para a sociedade, acerca de qualquer fato irregular atribuído especificamente sobre a direção da Polícia Federal, o que se justificaria a intervenção à revelia do ministro supervisor do órgão, que tinha, repita-se carta branca.
Nada foi alegado oficialmente, reforce-se, por parte do governo, à opinião pública sobre a deficiência constatada por parte daquele órgão, salvo possível deficiência pontual do trabalho das superintendências do Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, exatamente onde estão os desafetos do presidente e/ou de seus filhos, conforme mostram os fatos, dando a entender que esses órgãos setoriais deveriam se curvar à vontade da família para levantar informações nesses estados e repassá-las para o Palácio do Planalto, para a satisfação do clã.
O que impressiona é a falta de percepção para a realidade dos fatos, em que, no frigir dos ovos, o ex-ministro ainda é tachado de traidor, quando ele, apenas disse que não se submeteria à injustificável mudança da direção da Polícia Federal, para se colocar no posto pessoa que teria condições de manipulação, bastando apenas que ele concordasse com a manobra que deverá, enfim, ser materializada, agora sem entrave algum, à livre vontade do presidente, caso o Supremo Tribunal Federal não tivesse barrado, sob suspeita de possível afronta aos princípios moralidade, impessoalidade e do interesse público.
Bastava que o  ex-ministro tivesse concordado, quietinho, com a vontade presidencial, com o que, em troca, até ganharia de “mão beijada” o cargo de ministro do Supremo, conforme oferta feita por sua excelência uma deputada federal, que tanto implorou para que ele se curvasse aos caprichos do presidente, nesse particular, e, o mais grave, dessa suja manobra política a sociedade nem ficaria sabendo, mas o ex-juiz disse que não estava “à venda”.
Causa espécie que pessoa com as qualidades de traidora tenha se recusado prêmio tão expressivo de ministro da suprema corte de Justiça do país, precisava apenas ter ficado em silêncio e concordasse com tudo, que ele teria continuado normalmente no relevante cargo de ministro da Justiça, a despeito de estar desempregado, e logo mais galgaria ao posto máximo de servidor do Poder Judiciário.
É pena que os fatos não possam ser vistos e analisados sob o prisma da verdade, por parte de muitas pessoas, e que os seus protagonistas não sejam julgados exatamente com base nas suas reais atitudes, porque somente assim seria possível se fazer justiça a quem dela tem o devido merecimento.
Em síntese, nada desse episódio lamentável teria rendido tanto se o presidente simplesmente tivesse comunicado ao então ministro que a “carta branca” perde validade e, nesse caso, se, mesmo assim, ele gostaria de continuar no cargo ou não, porque, a partir de então, ele precisava fazer nomeação que considerava necessária.
Como se vê, trataria apenas de política civilizada e republicana de tratar os assuntos da administração no nível apropriado, em harmonia com o mesmo ambiente de decência e sinceridade que aconteceu quando ele concedeu a dita carta branca, que significa, em português literalmente cristalino, que somente as nomeações, na pasta comandada pelo então ministro, seriam promovidas com indicação ou com o consentimento dele, ao contrário do que aconteceu, onde a nomeação do novo diretor-geral foi publicada na calada da noite e sem a anuência de quem detinha a dita promessa de poder trabalhar com as pessoas da sua confiança e escolhidas por ele.
Outro ponto interessante e marcante, que ocupou o espaço da mídia, foi a opinião dos juristas renomados, em que alguns concordaram com a impugnação da nomeação feita pelo Supremo, diante da constatação da violação dos princípios da moralidade, da impessoalidade e do interesse público, enquanto outros dizem que aquela corte não poderia ter se imiscuído onde o presidente tem competência constitucional para promover as nomeações para os cargos no Executivo.
É evidente que essas últimas opiniões estão absolutamente corretas e são incontestáveis, mas tão somente em condições normais, onde não existisse, com plena validade, a “carta branca” e que esse compromisso teria sido violado pelo presidente, que, em princípio, não poderia fazer nomeação sem a aceitação do titular da Justiça, que seria obrigado a trabalhar com auxiliar direto que sabidamente passaria a receber ordens e orientações não dele, mas sim do presidente do país, em clara dissonância com o que havia sido estabelecido por ocasião do acerto para que o então juiz da Operação Lava-Jato aceitasse o convite do então presidente eleito da República.
Fora de dúvidas, para as pessoas de boa vontade e imbuída do melhor sentimento de justiça, essa questão não poderia ser analisada fora desse contexto, porque não faz o menor sentido que sobreponha outro fator estranho aos fatos verdadeiros, para se chegarem em conclusões visivelmente absurdas, que não condizem à realidade dos fatos.    
Não poderia deixar de dizer sobre o fato triste de o ex-ministro ter revelado à televisão conversa dele mantida com o presidente, para mostrar que as suas alegações são verdadeiras, em razão da citação do mandatário de que tal fato seria suficiente para a pretendida mudança na Polícia Federal.
Ou seja, até se provar em contrário, o ex-ministro mostra que falou a verdade, por ter provado o contrário do que afirmou o presidente, fato que, possivelmente, para não se passar por mentiroso, qualquer pessoa faria o mesmo.
É evidente que a maneira como isso foi feito merece o repúdio das pessoas sensatas e dignas, justamente por ele não compadecer com a pureza ínsita do ser humano, que precisa seguir os princípios éticos, embora as circunstâncias apelem para o socorro mais  apropriado ao momento.
É bem provável que o ex-ministro deve ter agido segundo as suas convicções e orientações próprias de seus sentimentos, em atendimento às suas conveniências de homem público que havia acabado de se exonerar, por vontade pessoal, de cargo da maior relevância da República e, no momento, tudo que fosse feito para mostrar a licitude de seus atos era válido, mesmo que isso evidenciasse, como de fato aconteceu, brutal atropelamento aos salutares princípios de sensatez e cidadania, cujo ato merece a devida censura por parte da sociedade.
Enfim, trata-se de caso bastante nebuloso, em que causas outras e jamais de interesse público se configuram nele, porque especificamente sobre este teriam de estar presentes, em especial, a transparência e o ato devidamente justificado sob o sinete da legitimidade e da impessoalidade, persistindo a necessidade do devido esclarecimento à sociedade quanto aos seus fins almejados, sopesando que a República precisa primar pela observância aos princípios, sobretudo, da dignidade, licitude e cristalinidade dos atos da administração.
Brasília, em 4 de maio de 2020

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