terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

A importância da memória

              A escritora Adélia Prado diz que “O que a memória ama, fica eterno”, tendo demonstrado isso no belo texto a seguir.

Quando eu era pequena, não entendia o choro solto da minha mãe ao assistir a um filme, ouvir uma música ou ler um livro. O que eu não sabia é que minha mãe não chorava pelas coisas visíveis. Ela chorava pela eternidade que vivia dentro dela e que eu, na minha meninice, era incapaz de compreender. O tempo passou e hoje me emociono diante das mesmas coisas, tocada por pequenos milagres do cotidiano. É que a memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos. Crianças têm o tempo a seu favor e a memória ainda é muito recente. Para elas, um filme é só um filme; uma melodia, só uma melodia. Ignoram o quanto a infância é impregnada de eternidade. Diante do tempo envelhecemos, nossos filhos crescem, muita gente parte. Porém, para a memória ainda somos jovens, atletas, amantes insaciáveis. Nossos filhos são crianças, nossos amigos estão perto, nossos pais ainda vivem. Quanto mais vivemos, mais eternidades criamos dentro da gente. Quando nos damos conta, nossos baús secretos – porque a memória é dada a segredos – estão recheados daquilo que amamos, do que deixou saudade, do que doeu além da conta, do que permaneceu além do tempo. A capacidade de se emocionar vem daí: quando nossos compartimentos são escancarados de alguma maneira. Um dia você liga o rádio do carro e toca uma música qualquer, ninguém nota, mas aquela música já fez parte de você – foi o fundo musical de um amor, ou a trilha sonora de uma fossa – e mesmo que tenham se passado anos, sua memória afetiva não obedece a calendários, não caminha com as estações; alguma parte de você volta no tempo e lembra aquela pessoa, aquele momento, àquela época... Amigos verdadeiros têm a capacidade de se eternizar dentro da gente. É comum ver amigos da juventude se reencontrando depois de anos – já adultos ou até idosos – e voltando a se comportar como adolescentes bobos e imaturos. Encontros de turma são especiais por isso, resgatam as pessoas que fomos, garotos cheios de alegria, engraçadinhos, capazes de atitudes infantis e debilóides, como éramos há 20 ou 30 anos. Descobrimos que o tempo não passa para a memória. Ela eterniza amigos, brincadeiras, apelidos... mesmo que por fora restem cabelos brancos, artroses e rugas. A memória não permite que sejamos adultos perto de nossos pais. Nem eles percebem que crescemos. Seremos sempre 'as crianças', não importa se já temos 30, 40 ou 50 anos. Prá eles a lembrança da casa cheia, das brigas entre irmãos, das estórias contadas ao cair da noite... ainda são muito recentes, pois a memória amou, e aquilo se eternizou. Por isso é tão difícil despedir-se de um amor ou alguém especial que por algum motivo deixou de fazer parte de nossas vidas. Dizem que o tempo cura tudo, mas não é simples assim. Ele acalma os sentidos, apara as arestas, coloca um band-aid na dor. Mas aquilo que amamos tem vocação para emergir das profundezas, romper os cadeados e assombrar de vez em quando. Somos a soma de nossos afetos, e aquilo que amamos pode ser facilmente reativado por novos gatilhos: somos traídos pelo enredo de um filme, uma música antiga, um lugar especial. Do mesmo modo, somos memórias vivas na vida de nossos filhos, cônjuges, ex-amores, amigos, irmãos. E mesmo que o tempo nos leve, daqui seremos eternamente lembrados por aqueles que um dia nos amaram.”.

Como não aplaudir texto com sublime expressividade como esse, que tem o poder mágico de passear por cada momento vivido por todos nós, mostrando que o ser humano tem praticamente os mesmos sentimentos sobre fatos vividos ao longo da sua trajetória terrena, com o acúmulo do aprendizado, da experiência e especialmente dos sentimentos vividos junto com familiares e amigos, que se traduzem em verdadeira síntese do que verdadeiramente somos.

Feliz é a pessoa que tem a sensibilidade  para compreender que nada somos senão o somatório dos sentimentos juntados em cada momento no caminho da vida, que são capazes de nos revelar por inteiro sobre o quanto de importância contribuímos com o engrandecimento da nossa própria vida, em quantidade de sentimentos de amor distribuída em forma de companheirismo, compartilhamento, tolerância, carinho e lições por conta do que somos como pessoa.

É exatamente assim que a vida se resume nesse maravilhoso conjunto de boas ações, que alimentam a paz de espírito que precisamos para encarar o caminho que nos resta a seguirmos, sempre em sagrada devoção com os melhores propósitos de agradarmos aos desígnios do Criador.

É por isso que trilhamos nesse caminho da vida permitido por Deus, que nos concede o discernimento para optarmos somente pela  prática das melhores ações possíveis, tendo a oportunidade para sermos protagonistas de bons exemplos de bondade e amor ao próximo.

          Brasília, em 21 de fevereiro de 2023

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