quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Insensibilidade

            O presidente da República, que fez  ameaça a jornalista após ser questionado sobre depósitos em dinheiro não justificados na conta bancária da primeira-dama, afirmou, no outro dia, ser perseguido por uma empresa das comunicações. 

O presidente usou as redes sociais para denunciar supostas ligações dessa empresa com um doleiro preso e condenado no âmbito da Operação Lava-Jato, ou seja, ele trata de assunto absolutamente estranho à indagação suscitada pelo repórter da emissora, possivelmente na tentativa de mostrar que quem tem “rabo preso” não poderia cumprir o seu dever de informar, conforme mostram os fatos a seguir.

O presidente do país afirmou que "O sistema (...) está me perseguindo há pelo menos 10 anos sem provar nada" e que aguarda "explicações da família (...)",  que é dona da referida empresa sobre denúncias feitas pelo citado doleiro, condenado a 13 anos de prisão, na semana passada, por evasão de divisas e lavagem de dinheiro.

O presidente se referia à reportagem publicada pela revista Veja sobre acordo de colaboração judicial firmado pelo citado doleiro, ainda mantido em sigilo judicial, no qual ele teria dito que realizou operações irregulares de câmbio para a família dona daquela empresa.

Não obstante, a própria revista Veja já esclareceu que o doleiro não apresentou qualquer prova sobre suposto negócio com os donos daquela empresa, os quais também negaram, de maneira veemente, por meio de suas redes de comunicação, qualquer relação com o doleiro.

A referida informação vem à tona um dia após o presidente ter se irritado publicamente com repórter da aludida empresa, por ele ter perguntado sobre possível escândalo que envolve a sua mulher, quando ele teria dito, verbis: "A vontade que tenho é de encher a sua boca de porrada".

Conforme denúncias publicadas nos últimos dias, nos meios de comunicação social, no sentido de que ex-assessor da família do presidente teria feito, no período de 2011 e 2016, cerca de 20 depósitos na conta da primeira-dama, no exato valor total de R$ 89 mil.

A verdade é que essa briga entre o presidente do país e a imprensa e recorrente, desde que ele assumiu o poder, em janeiro de 2019, e têm como alvo, em particular, a referida empresa, quando, vez por outra, se ela recrudesce de maneira exagerada, como no caso em voga.

À toda evidência, as querelas que, de maneira visivelmente ingênuas, inconsequentes e irresponsáveis, que o presidente da República insiste em manter nas entranhas do governo e que a todo instante são avivadas e discutidas de forma incivilizada publicamente remontam há muito tempo e dizem respeito exclusivamente à questão pessoal referente à possível perseguição pessoal, segundo a afirmação alegado por ele.

É terrivelmente lamentável o mandatário da nação ficar brigando, vez por outra, em público, tendo por enfoque questão pessoal que tem repercussão direta na imagem do Brasil, porquanto o seu comando fica sob a responsabilidade de quem ignora os princípios comezinhos que divisam o público do privado, ou seja, as questões particulares precisam ser separadas dos elevados interesses da nacionalidade, como forma de preservação da dignidade das coisas do Estado.

Quanto aos esclarecimentos sobre possível irregularidade na transação financeira entre o ex-assessor familiar e a primeira-dama, isso sim tem a ver com os interesses da transparência, no sentido de que compete ao presidente da República dizer à opinião pública, à sociedade, e provar a licitude dos depósitos feitos na conta dela, quando há forte suspeita de que o dinheiro provém de fonte não fidedigna, ou seja, tendo como origem arrecadação de fundo constituído pelo espúrio sistema da “Rachadinha”.

Nas nações com o mínimo de seriedade e evolução, em termos políticos e democráticos, o governante tem sim dever de prestar contas sobre a regularidade de seus atos e os da sua família, a exemplo da sua esposa, à vista da unificação patrimonial, que tem visibilidade perante a sociedade, em termos de transparência e legitimidade patrimonial.

Ou seja, é dever do governante esclarecer os fatos relacionados com a sua pessoa ou pessoa da sua intimidade familiar, como maneira civilizada de mostrar que não existe nada que possa macular a sua dignidade como homem público.

Ao contrário disso, ao invés de procurar esclarecer educadamente os fatos, como fazem os verdadeiros homens públicos, exatamente no âmbito do dever de cidadania, o presidente brasileiro prefere agredir o profissional da imprensa e ainda fazer acusação sobre fato que não tem a menor pertinência com a pergunta do repórter, tudo a conspirar contra os seus interesses, por causar muito mais embaraço e transtorno à elucidação dos fatos colocados em discussão.

A verdade é que, havendo regularidade na transação financeira em questionamento, tudo se resolveria pacificamente com a devida e precisa informação sobre os fatos, porque é exatamente assim o entendimento entre pessoas civilizadas, sem necessidade alguma de retaliações nem acusações intempestivas e fora do contexto sobre o cerne da questão.

Não há a menor dúvida de que a verdadeira estupidez nasce e tem fonte precisamente na pessoa do presidente do país, porque o assunto questionado diz respeito à pessoa da esposa dele e tudo não passaria da normalidade se ele tivesse se dignado a responder de forma educada e civilizada à indagação do repórter, se pertinente ou não, que não interessa ao caso, porque a ele sim compete responder na forma do melhor e do mais elevado padrão de elegância e cortesia, à vista da sua relevância como principal representante da nação, diante da sua obrigação de prestar informação sobre fatos relacionados à sua pessoa ou à pessoa da sua intimidade, que é o caso da esposa.

Por seu turno, a acusação sobre a atividade do doleiro soa como deselegância e tentativa de intimidação da maior estupidez por parte de homem público, por ter sido invocado episódio completamente dissonante do cerne da pergunta do repórter, que diz com depósitos suspeitos de dinheiro na conta da primeira-dama, que não foi respondida prontamente, como é do dever moral dele, que preferiu incursionar em assunto do maior equivoco, como se ele fosse capaz de justificar alguma coisa em prol da causa que permanece na pendência de esclarecimentos e isso é bastante desagradável para a imagem do presidente do país.  

De qualquer modo, não é de bom tom que o presidente da República fique fazendo acusações nas redes sociais, com alusão direta sobre quem demonstra ter forte animosidade, mesmo que a acusação de que se trate seja verdadeira, porque isso em nada pode servir para o seu aproveitamento, como forma de aliviar o peso da suspeita de irregularidade com relação aos depósitos de dinheiro feitos na conta bancária da sua esposa, eis que os fatos objeto da denúncia sobre a mencionada empresa somente interessam à Justiça, que tem competência constitucional e legal para julgá-los, independentemente da lembrança sobre a existência deles.   

Enfim, o presidente da República perde excelente oportunidade para esclarecer à nação fato que é sim do seu dever mostrar e provar a devida regularidade, para o próprio bem da imagem do seu governo, que ganharia em credibilidade com os oportunos esclarecimentos sobre a questão suscitada pelo profissional da imprensa, que apenas cumpria o seu dever de ofício, em sintonia normal com a prática de levar informação à sociedade, em especial, no caso, fato que já era objeto de notícia, que envolve a pessoa da primeira-dama e, por via de consequência, à do próprio mandatário brasileiro.         

          Brasília, em 25 de agosto de 2020  

Nenhum comentário:

Postar um comentário