segunda-feira, 8 de maio de 2017

Ausência de autoridade e do Estado

Nas maiores penitenciárias do país, a superlotação ainda é um dos grandes problemas, mas os outros também não são de menor gravidade, a exemplo do que acontece com a Cadeia Pública de Porto Alegre, onde abriga mais de 4.600 presos, quando o espaço físico somente comportaria 1.900 homens, ou seja, menos da metade da sua atual capacidade de ocupação.
Diante dessa calamitosa situação, foi constatado que as celas ficam permanentemente abertas, permitindo que os detentos possam circular como mera república residencial, com livre contato entre todos, em qualquer hora, da noite ou do dia.
As regras são ditadas pelos próprios presos, havendo total descontrole por parte das autoridades, que reconhecem e admitem, a exemplo do próprio juiz encarregado de fiscalizar o presídio, que disse que quem manda e por lá são as facções criminosas.
A situação é de tamanha esculhambação que os produtos básicos, como material de limpeza e as roupas usadas pelos detentos, são fornecidos pelos criminosos que comandam as três maiores facções em atuação no estado. 
O juiz disse que “O Estado é dependente das facções. São elas que asseguram a integridade da pessoa presa. Dentro de uma galeria tem 500 presos e nenhum policial, e quem garante que você não vai morrer ali dentro é quem controla o lugar. Portanto, a vida está na mão da facção, não do Estado. Se o Estado quer reassumir o controle do presídio, a primeira coisa é garantir a integridade física do preso”.
O juiz afirma que o governo estadual fornece apenas energia elétrica, água e alimentação básica para os presos, ficando o resto sob o provimento das facções criminosas, fato que ajuda a aumentar o poderio dos criminosos dentro do presídio, uma vez que “A facção se torna credora do sujeito em cima de comida, remédio, material de higiene, roupa, calçado. Quem fornece é a facção ou a família. O Estado não dá”.
A autoridade do juiz é incapaz de diminuir a força das facções, ficando claro o mau exemplo do absurdo em que se transformou o sistema prisional tupiniquim, ao ponto de somente se permitir a instalação da vara especial de execuções, dentro da cadeia, depois de a Justiça fazer, pasmem, “acordo verbal” com as facções.
Em termos oficiais, a segurança do presídio compete à Brigada Militar do Estado, mas, na prática, como disse o juiz, são os próprios presos que ditam suas regras internas e, a partir do “pacto de boa convivência”, são garantidas a paz e a harmonia entre eles.
Para se chegar ao entendimento entre o juiz e os presos, o magistrado precisou negociar e impor condições aos detentos, como não haver desavenças, assassinatos ou desrespeito a ele, aos policiais e funcionários.
O acordo foi selado e tem sido cumprida a regra segundo a qual a “cela é a extensão do lar dos presos”, ficando entendido que as brigas externas de facções ficariam restritas às ruas e, em contrapartida, os presos ganhariam um representante do Judiciário, para facilitar a análise de suas causas.
O juiz admite que o domínio das facções não tenha obrigado o Estado a se curvar ao poder do crime organizado, por defender o diálogo com os detentos, para estabelecer as regras civilizatórias num espaço que já havia sido perdido para os bandidos.
Ele disse que “Quem parou de dar facada e de se rebelar? Eles é que estão se curvando. Não pedimos favor a nenhum preso. Qual seria a melhor forma de se relacionar com as pessoas se não com o diálogo? É mais importante conversar do que impor. Quando as pessoas e os presos ajudam a construir algo, a tendência de dar certo é maior, eles se sentem integrantes e passam a se esforçar para que dê certo.”.
O juiz admite que funcionam dentro do presidio negócios livremente, em mercado informal de produtos diversos controlados pelas fracções, desde material de higiene a lanches, drogas, celulares e, pasmem, até armas de fogo também são comercializadas.
Acontece que as dívidas são pagas pelos comparsas livres nas ruas, que ficam se digladiando e se matando para sustentar os presos, cujo reflexo é atribuído à sociedade, que paga com o infortúnio da violência e da criminalidade para sustentar a tranquilidade dos bandidos sendo bem tratados no presídio.
Ou seja, a paz que há dentro da cadeia não passa de verdadeiro paradoxo, porque a realidade da capital gaúcha vive escalada crescente de criminalidade, protagonizada justamente pelas facções que cuidam da harmonia dentro do presídio, enquanto a população é infernizada com o aumento das ondas de assassinatos e demais violências.
Há correlação direta entre as facções que dividem o controle do presídio e a violência do lado de fora, enquanto dentro da unidade os grupos mantêm o “pacto de paz”, o acordo é completamente ignorado nas periferias da cidade, onde há ferrenha disputa pelo lucrativo mercado das drogas.
Em fria análise, pode-se perceber que a paz existente entre presos, que têm tratamento totalmente diferenciado do sistema prisional, se traduz em verdadeiro absurdo, porque ela é construída e mantida com o sangue de vítimas da população, que perde a paz em nome da tranquilidade dos bandidos bem-comportados do presídio público.
Na realidade, à toda evidência, não é exatamente esse modelo que precisa ser copiado, porque a paz estar sendo garantida para facções de detentos com base em premissa falsa, a que, dentro do presídio, se exige bom comportamento, com a liberação geral, inclusive de drogas, armas de fogo e tudo o mais ilícito, enquanto a violência que sustenta essa pseudo-harmonia, pode intensificar a arte da violência na cidade, massacrando a população que trabalha e sustenta, com o seu suor, o sistema prisional falido e completamente decadente, que ainda se vangloria de manter funcionando pacto esdrúxulo, visivelmente ilegítimo e inadequado para os padrões de civilidade do século XXI. 
É lamentável que a paz somente tenha sido mantida no presídio mediante a aceitação, cumplicidade e conivência da Justiça com as imposições das facções criminosas, absolutamente ao arrepio da legislação que disciplina o sistema penitenciário, que não prevê a possibilidade que normas estranhas imperem no âmbito do presídio, para tutelar a conveniência dos presos.
É o que se pode denominar de inversão da ordem natural, para que, mesmo nessas condições de ilegalidade, a harmonia e a paz sejam estabelecidas no presídio, que vem sendo comandado por facções criminosas.
Ao ritmo da esculhambação e da intranquilidade no seio dos presídios brasileiros, a fórmula encontrada para solucionar tão grave questão vivenciada no sistema carcerário configura quadro esdrúxulo e de extrema complexidade, diante da injustificável complacência da Justiça - que, ao contrário, tem a incumbência de exigir plena e correta aplicação da lei , com atos infracionais da maior gravidade, por permitir, em nome da tranquilidade e da harmonia no âmbito da Cadeia Pública de Porto Alegre, que os presos estabeleçam suas normas de conduta interna, exatamente ao arrepio do ordenamento jurídico pátrio, obviamente sob o império da balbúrdia e da ausência da autoridade pública e do Estado. Acorda, Brasil!
ANTONIO ADALMIR FERNANDES

Brasília, em 8 de maio de 2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário