quinta-feira, 4 de março de 2021

Criação de pânico?

 

No dia anterior ao do registro de recorde de mortes diárias causadas pela Covid-19, o presidente da República falou para apoiadores sobre a pandemia, tendo declarado, verbis: "Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode entrar em pânico. Que nem a política, de novo, do fique em casa. O pessoal vai morrer de fome, de depressão?", conforme vídeo divulgado nas redes sociais.

Em crítica direta à imprensa, o presidente disse que, "para a mídia o vírus sou eu.".

Conforme levantamento do consórcio de veículos de imprensa, o Brasil registrou 1.840 mortes pela Covid-19, na quarta-feira, que é recorde desde o início da pandemia, que já são contabilizados, no total, 259.402 óbitos, até o momento, tendo ainda a triste tendência de alta nos óbitos pela doença.

Chega a ser alarmante a média móvel de mortes no Brasil, nos últimos 7 dias, que chegou a 1.332, verificando-se aumento de 29%.

Nos últimos dias, os estados decidiram adotar medidas restritivas de isolamento social, na tentativa de conter o avanço da doença e o risco de colapso no sistema de saúde, à vista do aumento da ocupação de leitos de UTI, por pacientes graves da Covid-19, que, em muitos casos, já atingem a 100%.

O presidente do país ainda disse que "A economia tem que pegar. Alguns falam que eu não estou preocupado com mortes. Estou preocupado com mortes, mas emprego também é vida. Uma pessoa desempregada entra em depressão, tem problemas, se alimenta mal, é mais propensa a pegar outras doenças".

O presidente disse que "Agora? Um ano depois? Lembraram de mim um ano depois? Estão sendo pressionados pela população, que não aguenta mais ficar em casa, tem que trabalhar por necessidade [...] Infelizmente, o poder é deles, eu queria que fosse meu", evidentemente em referência aos estados.

Em resposta à indagação de  jornalistas sobre a possibilidade de um toque de recolher nacional ou uma política nacional para conter o avanço da pandemia, como foi reivindicado por secretários de saúde dos estados, o presidente fez  uso de argumento que vem repetindo há meses, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal entendeu que apenas estados e municípios podem tomar medidas contra o avanço do vírus, o que nada disso é verdade, ficando muito esquisito, porque isso não corresponde à verdade, conforme se percebe a seguir.

O presidente afirmou ainda que tem um plano para colocar em prática contra a pandemia, mas que depende de o Supremo lhe conferir os poderes para tomar decisões nessa área, tendo afirmado: "Então, se eu tiver poder para decidir, eu tenho o meu programa, o meu projeto pronto para botar em prática no Brasil. Agora, preciso de ter autoridade. Se o Supremo Tribunal Federal achar que pode dar o devido comando dessa causa a um poder central, que eu entendo que seja legítimo meu, eu estou pronto para botar meu plano".

Questionado pelos jornalistas sobre qual seria o plano, o presidente não revelou, tendo apenas declarado: "Não, não, não", fato este que só demonstra muita maldade, quando se tem plano e não o apresenta, exatamente no âmbito do dever de tudo fazer para beneficiar a população, mas não o faz, o que pode caracterizar crime de responsabilidade, por deixar de oferecer política de interesse público e não o faz por pura maldade, porque nada impede que o presidente trabalhe em prol da população.

É importante que se enfatize que a respeitável decisão do Supremo foi tão somente de declarar estados e municípios competentes para tomar as decisões, mas que a responsabilidade também cabe à União, ou seja, trata-se de decisão clara, sensata e responsável, em se tratando de grave crise pandêmica, que que muitos a minimizam no âmbito de estarrecedora e inadmissível insensibilidade e desumanidade, para os padrões de evolução do Homo sapiens.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, na abertura do ano do Judiciário, aproveitou a presença do presidente da República para reforçar que aquela corte nunca retirou do governo federal o poder de agir contra a pandemia da Covid-19, tendo deixado claro que a  decisão apenas delegou a ação a todos os níveis de governo, ou seja, federal estadual e municipal.

Eis o teor da decisão do Supremo, ipsis litteris: “DETERMINAR a efetiva observância dos artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198, todos da Constituição Federal na aplicação da Lei 13.979/20 e dispositivos conexos, RECONHENDO E ASSEGURANDO O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS GOVERNOS ESTADUAIS E DISTRITAL E SUPLEMENTAR DOS GOVERNOS MUNICIPAIS, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; INDEPENDENTEMENTE DE SUPERVENIENCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário. Obviamente, a validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal poderá ser analisada individualmente. Intimem-se e publique-se. Brasília, 8 de abril de 2020.”.

Desde a aludida decisão, proferida em abril de 2020, o presidente do país passou a dizer, de maneira sistemática, que teria sido impedido de agir, possivelmente na tentativa de se esquivar dos péssimos resultados da gestão pertinente à grave crise da doença do corona, no país, onde quase 260 mil pessoas já  morreram em decorrência da Covid-19.

O presidente do Supremo declarou, com ênfase, que, "No auge da conjuntura crítica o STF, em sua feição colegiada, operou escolhas corretas e prudentes para preservação da Constituição e da democracia, impondo responsabilidade da tutela da saúde e da sociedade a todos os entes federativos, em prol da proteção de todo cidadão brasileiro".

Há pouco de um mês, depois de o presidente do país ter repetido mais uma vez as afirmações inverídicas de que ele foi impedido de combater a pandemia do coronavírus, o Supremo respondeu, por meio de nota, que deixava claro que a decisão estabelecia por ele diz exatamente o seguinte: "União, Estados, Distrito Federal e municípios têm competência concorrente na área da saúde pública para realizar ações de mitigação dos impactos do novo coronavírus".

Sem citar diretamente o Executivo, o presidente do Supremo disse ainda que não se deve "ouvir as vozes isoladas, pessoas que abusam da liberdade de expressão e que a ciência irá vencer a Covid-19.”.

O presidente do Supremo fez questão de criticar o que ele denominou de "vozes obscurantistas", que precisam ser combatidas com rigor, tendo citado, como exemplo de negacionismo, o discurso do presidente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que chamou de "esquizofrenia e palhaçada midiática fúnebre as políticas de isolamento social.”.

O referido vídeo foi compartilhado pelo presidente da República, nas suas redes sociais, certamente para servir de reforço ao seu pensamento nefasto e negacionista, muito mais em defesa da economia e em nítido desprezo à vida humana, porquanto, o bom senso e a racionalidade sinalizam que o isolamento social certamente poupou preciosas vidas humanas, principalmente no que se refere às aglomerações, onde o vírus dissemina inevitável e facilmente .

O presidente do Supremo afirmou que "Não tenho dúvidas de que a ciência, que agora conta com a tão almejada vacina, vencerá o vírus; a prudência vencerá a perturbação; e a racionalidade vencerá o obscurantismo. Para tanto, não devemos dar ouvidos às vozes isoladas, algumas inclusive no âmbito do Poder Judiciário, que abusam da liberdade de expressão para propagar ódio, desprezo às vítimas e negacionismo científico. É tempo de valorizarmos as vozes ponderadas, confiantes e criativas que laboram diuturnamente, nas esferas públicas e privadas, para juntos vencermos essa batalha".

Realmente, a r. decisão em apreço é bastante clara, porque apenas concede competência “concorrente” para governadores e “suplementar” para prefeitos, sem mexer na competência privativa do presidente da República, quando ela afirma: “(...) INDEPENDENTEMENTE DE SUPERVENIENCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário. (...)”.

A decisão em tela fala em competências concorrente e suplementar, respectivamente dos governadores e dos prefeitos, deixando, como não podia ser diferente, intacta a competência presidencial, que foi reforçada com a cooperação conjunta daqueles agentes públicos, na condução das políticas pertinentes ao controle da pandemia, e que ele ficou absolutamente com liberdade para atuar em tudo objetivando o combate à doença, mas não o faz simplesmente porque não quer, uma vez que, se realmente ele tivesse sido impedido de agir, como ele sempre alega, bastaria ele ter apresentado recurso ao Supremo, mostrando que a execução das políticas de saúde pública, por força da Constituição Federal, é de competência, em especial no que diz respeito às lideranças e coordenação das medidas pertinentes.

Com isso, ficaria evidente que o Supremo não tem competência para suprimir importante atribuição do presidente da República, que apenas foi eliminada ao seu talante, de modo a justificar o injustificável no que dizem com a omissão e irresponsabilidade de se afastar deliberada e declaradamente da prestação dos serviços da sua exclusiva competência, à vista da completa ausência do ministério que tem a incumbência constitucional de trabalhar e zelar pela saúde dos brasileiros, mas ele se mostra extremamente inoperante e distante dos graves problemas, tendo se tornado agente tumultuador da imunização dos brasileiros, diante da desorganização e falta de vacinas.  

É terrivelmente lamentável que o presidente do país consiga interpretar diferentemente texto tão claro, na cristalina tentativa de justificar omissões e falhas governamentais, pondo, de forma indevida, a culpa no Supremo, quando não existe nada de decisão nesse sentido.

O certo mesmo é que o governo se aproveitou dessa equivocada interpretação para tentar álibi para omissões no combate à doença, quando ele, achando-se impedido de atuar na crise da pandemia, se realmente tivesse interesse em agir em benefício da saúde da população, deveria, repita-se, ter impetrado, imediatamente, recurso junto ao Supremo, esclarecendo a sua competência constitucional de cuidar da saúde dos brasileiros, em âmbito federal, e que ele não poderia ficar fora desse processo de importante sanitização.

Ao contrário disso, muito mais por conveniência, nenhum recurso foi manejado, talvez porque ele devesse impedir que o presidente ficasse propalando que tem sido objeto de injustiça e vitimização por parte de outro poder, como vem alegando, de maneira indevida, e ainda ele não teria como justificar que o governo tem sido omisso em muitos casos, em especial no desastre do Amazonas, quando dezenas de doentes morreram, por falta de oxigênio, onde há possibilidade de culpa concorrente dos governantes.

Ainda com relação ao isolamento social, que tanto o presidente do país abomina, diante do seu reflexo na economia, em detrimento da importância da preservação da vida, ele e seu governo se mostram absolutamente omissos, por deixarem de estudar a matéria pertinente a essa medida e extrair as conclusões apropriadas para o manejo do isolamento, como forma de normatização criteriosa de controle e sanitização, de modo a se permitir todas as atividades em ritmo de normalidade, garantindo-se a preservação da vida das pessoas mais vulneráveis à doença, como os idosos e os portadores de comorbidades.

Ao contrário disso, o governo não fez absolutamente nada, no sentido de estudar e normalizar medida tão importante, o que permite a continuidade do caos na vida das pessoas, tendo-se apenas a grande vantagem de se permitir que o presidente do país ponha culpa no isolamento pela quebradeira da economia, o que é pura verdade, mas grande culpa cabe a quem tem a obrigação de cuidar do combate à pandemia, inclusive tendo a iniciativa de estudar os casos, a exemplo do isolamento, e estabelecer normas técnicas apropriadas, consistentes na devida orientação à população, que poderia continuar trabalhando normalmente, caso houvesse norma federal tratando desse importante assunto.

Não há a menor dúvida de que não somente o presidente do país, mas todos os brasileiros, precisam se preocupar com o isolamento social, diante do reflexo na economia, porque esta é a mola que move a vida do país, mas é preciso preocupação com a vida das pessoas, no sentido de preservá-la, algo que o governo demonstra muito pouco interesse, como a falta de normatização e instrução à sociedade sobre a convivência social, cujos cuidados foram e são aprendidos por meio das relações sociais, o que é bem diferente se houvesse orientação oficial escrita e divulgada para os brasileiros. 

À toda evidência, não há a menor dúvida de que é inadmissível que decisão da Justiça, absolutamente clara, tenha sido aproveitada pelo governo para o respaldo da sua injustificável omissão no combate à pandemia do novo coronavírus, permitindo que a quantidade de vítimas só aumentasse, o que demonstra o elevado grau da insensibilidade diante de crise tão grave, fato este que jamais poderia ter acontecido, ante a possibilidade de recurso, para o fim do esclarecimento dos fatos, o que certamente resultaria em benefício para a vida dos brasileiros, caso houvesse boa vontade por parte dos governantes.

É bastante lamentável que, em momento da maior gravidade da saúde pública, por causa da pandemia, quando se contabiliza mais de 1.800 mortes somente em um dia, a maior autoridade da República ainda tenha o disparate de fazer chacota com a situação, para dizer, ipsis litteris: "Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode entrar em pânico. Que nem a política, de novo, do fique em casa. O pessoal vai morrer de fome, de depressão?".

O presidente do país dá a impressão de que a culpa pelo caos reinante no país é da impressa, que somente cumpre o seu sublime e religioso papel de publicar os fatos da vida, mostrando a calamidade que grassa no nariz do Palácio do Planalto e apenas faz pouco caso e chacota da tragédia, por meio da suposição de que criaram pânica, como se tamanha desgraça fosse possível ser criada por simples publicação de notícia que é a síntese real da precariedade da administração pública, perante o efetivo combate à pandemia no novo coronavírus.

Causa perplexidade que, de maneira impressionante, surrealista e inadmissível, o presidente do país entenda, de maneira simplista, o desenrolar de gravíssima pandemia, à vista de se tratar do principal líder do país com as grandezas social e econômica do Brasil, em se dignar a manifestar-se em claras insensibilidade e desumanidade diante de insuportável calamidade prevalente na saúde pública, ao mostrar atitude visivelmente esdrúxula como a de apenas estranhar a criação de pânico em cima de fatos irrefutavelmente suscitados por força da Covid-19, quando a sua autoridade deveria ser de compaixão, lamento e abatimento, por tão infausta situação de tragédia nacional.

Brasília, em 4 de março de 2021

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