domingo, 17 de janeiro de 2021

Interpretação irreal

O presidente da República afirmou, no dia 16, que "tinha que estar na praia numa hora dessas", ao se referir à atuação do governo federal no enfrentamento à pandemia de Covid-19, em Estados e municípios, tendo citado a difícil situação de Manaus, que passa por forte crise, em razão do sensível aumento dos casos e mortes pela doença e dificuldades do suprimento de oxigênio para dar suporte aos pacientes.

O presidente disse, em entrevista para apresentador de televisão, que "Eu tinha que estar na praia numa hora dessas. Pelo Supremo Tribunal Federal, eu tinha que estar na praia agora, Datena, tomando uma cerveja. O Supremo falou isso para mim e o erro meu agora foi não atender o Supremo e por estar interferindo, ajudando quem está morrendo em Manaus, com cilindros, remoções, com tratamento precoce também, Manaus estava abandonada".

A afirmação relativa ao Supremo Tribunal Federal, de que ele não teria responsabilidade de agir para combater a pandemia, tem sido repetida com frequência pelo presidente, que procura embaralhar o que foi a decisão da corte.

Ressalte-se que, em abril do ano passado, o Supremo garantiu a Estados e municípios poderes para tomar medidas no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, como fixar regras de isolamento social, quarentena e restrição no uso de transporte público.

Não obstante, o Supremo também entendeu que a União tem poderes para se manifestar sobre restrições, nos casos em que há atribuição expressa para o governo federal, como no caso, por exemplo, de eventual fechamento de aeroportos.

Na mesma entrevista, o presidente brasileiro disse ainda que o presidente da Câmara dos Deputados e o governador de São Paulo não teriam "moral" para falar em impeachment sobre a atuação dele no enfrentamento ao Covid-19, se ele teria sido "impedido" pelo Supremo fazer qualquer ação na pandemia em Estados e municípios, o que não é verdade.  

Em entrevista à imprensa, o presidente da Câmara dos Deputados teria dito que “Será inevitável discutir um pedido de impeachment contra Bolsonaro, ‘no futuro’".

Quem teve o cuidado de conhecer e interpretar o conteúdo da decisão do Supremo, sabe perfeitamente que não é verdade que a corte tenha aconselhado o presidente ir para a praia, conforme assim ele concluiu, de maneira completamente distorcida da sua real finalidade, bastando para se entender que a generalização do seu alcance pelo intérprete-mor é apenas estarrecedora, posto que foi dito nela que os governadores e prefeitos têm competência para cuidar do distanciamento e isolamento dos casos apenas ali especificados, sem prejuízo, nesse caso, da competência do presidente, além da liberdade dele de agir quanto aos demais assuntos pertinentes à pandemia do coronovírus, que ele, por conta e vontade próprias se recusa a assumir, talvez por capricho inerente ao seu poder presidencial.    

É importante deixar claro que o Supremo, em momento algum, retirou poderes privativos e próprios do presidente do país, na condução da saúde pública, de que tratam os ditames constitucionais e legais, mas procurou deixar bem claro que os Estados e municípios também têm autoridade para gerenciar a crise da pandemia, no sentido de que a população pudesse ser devidamente orientada e cuidada quanto aos assuntos emergenciais ainda sem normatização, à época e também agora.

A bem da verdade, o governo simplesmente interpretou a respeitável decisão como sendo absurda interferência do Supremo no Executivo e, por via de consequência, o presidente resolveu, certamente no âmbito da discricionariedade, abandonar por completo a sua obrigação de bem cuidar da saúde dos brasileiros, aproveitando a deixa interpretativa da decisão que ele sempre e magistralmente invoca para tentar justificar o injustificável da sua incompetência gerencial quanto à condução das questões inerentes ao combate à pandemia.

A tentativa do respaldo em decisão judicial para se evitar a abertura de processo de impeachment contra o presidente, conforme cogitação pelas autoridades citadas acima, não tem a menor procedência, em especial porque o Supremo não proibiu absolutamente nada de o chefe do Executivo agir livremente, precisamente no âmbito da sua competência privativa, prevista na Constituição e nas leis do país, porque o Supremo não seria tão incompetente de decidir no sentido de retirar atribuições do presidente, em especial quando o Brasil precisava dos melhores cuidados e esforços para o enfrentamento dos problemas relacionados com a grave pandemia do coronavírus.

Não resta qualquer margem de dúvida quanto ao sentido teratológico que foi dado pelo presidente à r. decisão do Supremo, porque a sua interpretação diz muito mais com o contrário da lógica, do bom senso e do verdadeiro sentido das normais jurídicas vigentes, diante da impossibilidade de a corte suprimir competência presidencial privativa em nível constitucional, porque isso não passaria de absurdo, em termos da despropositada e injustificável interferência do Poder Judiciário no Executivo.

No momento de grave crise, que se abate sobre a saúde dos brasileiros, é importante que haja o fortalecimento da união e da maior ampliação possível de cooperação entre todos os entes da federação, de modo à facilitação das medidas necessárias ao enfrentamento da difícil situação, como forma positiva para a defesa do interesse público, objetivando à valorização dos princípios humanitários, cabendo a uníssona participação da União, dos Estados e municípios, na busca dos melhores resultados em benefício da população, mas, infelizmente não foi possível, nesse caso, de se evitar o divisionismo prejudicial à união de esforços e aos interesses na busca da unificação de propósitos, possivelmente diante de ambições políticas ou até mesmo de poder, com sensível prejuízo para a sociedade.

É preciso compreender que a decisão do Supremo garante autonomia a prefeitos e governadores para ajudar no enfrentamento do coronavírus, uma vez que os estados e municípios podem regulamentar medidas de isolamento social, fechamento de comércio e outras restrições, diferentemente do entendimento do presidente do país, que entendia caber exclusivamente ao governo federal definir quais serviços devem ser mantidos ou não. 

O atrito de competências era muito ruim, porque, nesse momento difícil, todas as unidades da federação precisava de unificação de forças e o Supremo atendeu exatamente nesse sentido e apenas reconheceu que os governadores e prefeitos têm plenas condições de tratar do assunto como deve, sob a sua jurisdição, que diz com uma das maiores crises da saúde pública, que precisa da cooperação, da ajuda e das providências da União, dos Estados e dos municípios, na união conjunta que objetiva à busca de meios capazes de combater o coronavírus, o verdadeiro inimigo da humanidade. 

Os princípios constitucionais são muito claros em vislumbrarem que a União, os estados e os municípios busquem alternativas em conjunta para a solução das questões relacionadas com a saúde pública e, numa situação gravíssima como a atual, é preciso que todos os entes da federação se mobilizem com esse propósito, para o bem da população. 

Os governadores e os prefeitos, que estão, no quotidiano, no convívio da população, conhecem melhor do ninguém os problemas locais, cabendo a cada região, que tem a sua especificidade, a sua estratégia e a sua forma apropriada, lidar com a crise, ficando a União com a competência de convergir forças e criar condições, principalmente em termos econômicos, para dar suporte aos estados e municípios para o enfrentamento ativo, efetivo e eficaz da crise causada pelo coronavírus.  

Embora meus conhecimentos jurídicos sejam limitados, penso que a questionada decisão do Supremo tem a finalidade de contribuir para melhorar e fortalecer as medidas capazes de combate ao coronavírus, à medida que as unidades da federação ganham a faculdade de agir, em cada caso, de acordo com a situação de cada  local, em termos de isolamento social, nas suas diversas formas e abrangência.  

Convém que as pessoas interessadas conheçam o conteúdo da r. decisão do Supremo Tribunal Federal, para possibilitar melhor interpretação sobre o seu verdadeiro conteúdo e alcance, para o fim de aquilatar se realmente o presidente do país pensa como os brasileiros, com relação ao desiderato dela.

Eis o teor da decisão do Supremo, ipsis litteris: “DETERMINAR a efetiva observância dos artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198, todos da Constituição Federal na aplicação da Lei 13.979/20 e dispositivos conexos, RECONHENDO E ASSEGURANDO O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS GOVERNOS ESTADUAIS E DISTRITAL E SUPLEMENTAR DOS GOVERNOS MUNICIPAIS, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; INDEPENDENTEMENTE DE SUPERVENIENCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário. Obviamente, a validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal poderá ser analisada individualmente. Intimem-se e publique-se. Brasília, 8 de abril de 2020.”.

Vejam-se que a decisão acima fala em competência “concorrente” dos governadores e “suplementar” dos prefeitos, sem atacar a competência privativa do presidente da República, “para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; (...) INDEPENDENTEMENTE DE SUPERVENIENCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário. (...)”.

Ou seja, a decisão fala em competências concorrente e suplementar, respectivamente dos governadores e dos prefeitos, sem tolher a competência presidencial, quando estabelece “independentemente de superveniência de ato federal em sentido contrário, sem prejuízo da competência geral da União para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional,”, ficando muito claro que o presidente tinha apenas a força da cooperação conjunta dos governadores e prefeitos na condução das políticas pertinentes ao controle da pandemia, e que ele ficou absolutamente livre para agir normalmente, conforme  ficou dito, objetivamente, na decisão, que teve a interpretação da conveniência do presidente, como forma inexplicável de seu governo se omitir da grave crise, com base em pseudodecisão judicial, por que inexistente.

Com a devida sinceridade de análise, o bom senso, a racionalidade e a sensibilidade acenam que, se o presidente tivesse o mínimo interesse de o governo cuidar e se empenhar, com o devido, pela vida dos brasileiros, nesse caso que diz à decisão do Supremo, se ele tivesse alguma dúvida de interpretação de seus termos, no sentido de prejudicar a atuação privativa de competência constitucional dele, o princípio jurídico ensina que seria obrigação o Estado de recorrer das medidas que não estivessem em harmonia com a obrigação de fazer dele, não sendo nada vergonhoso que, na dificuldade da interpretação literal da decisão, fosse encaminhado, na pior hipótese, pedido de esclarecimentos ao Supremo sobre o alcance e os efeitos dela, para que fosse evitado o seu indevido uso, como vem sendo feito, sem a menor plausibilidade.

A ilação mais provável que se permite ser feita é a de que nenhuma medida recursal ou de esclarecimento foi dirigida ao Supremo, possivelmente  porque isso impediria de o mandatário sempre alegar que houve indevida interferência da corte em matéria privativa do Executivo, o que não é verdade, e certamente não haveria a possibilidade de se propalar a injustiça e a vitimização, como se faz com frequência, caso fosse satisfatória a resposta, e ainda não teria como justificar que o governo tem as mãos amarradas por força da decisão em apreço, que não é nada do que se apregoa, como visto.

Ao deixar de recorrer ao Supremo, obviamente por razões de conveniência, o Executivo aceita implicitamente a decisão como justa e inquestionável, não podendo alegar sequer indevida interferência, por não ter havido supressão de competência presidencial.  

Enfim, é preciso compreender que a interpretação presidencial sobre a decisão do Supremo é irreal e imprecisa, porque o seu sentido, à toda evidência, não condiz com o entendimento de restrição às suas atribuições, porquanto ela apenas reconhece competência a governadores e prefeitos para normatizarem sobre as condições  distanciamento e isolamento, nas condições nela estabelecidas.   

Espera-se que os brasileiros conscientes e responsáveis, imunes ao fanatismo ideológico, compreendam o real e verdadeiro sentido de cooperação pretendida pela decisão do Supremo Tribunal Federal, de modo a não aceitar as distorcidas interpretações do presidente da República sobre o seu conteúdo, que não interfere nem reduz a competência presidencial prevista na Constituição Federal, de vez que pensamento diferente disso não passa de má vontade e de desinteresse às causas pertinentes ao interesse da saúde dos brasileiros.   

Brasília, em 17 de janeiro de 2021

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