segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Demonstração de incivilidade

No ano passado, houve referendo na Bolívia que decidiu rejeitar nova reeleição do atual presidente do país, pondo ponto final nas esperanças dele de se perpetuar no poder, como fazem normalmente os governos socialistas, que desprezam a salutar alternância do poder.
Não conformado com a vontade popular, o mandatário boliviano conseguiu estranha decisão da lavra do Tribunal Constitucional daquele país, autorizando-o a disputar o quarto mandato, em claro atropelamento à regra insculpida na Constituição, cuja disposição referente a essa questão foi reforçada pelo resultado do aludido referendo.
Trata-se de indiscutível demonstração de que está bastante ativa a repudiável tradição de país líder e recordista de golpes de Estado, embora o último agora desferido, pelo citado tribunal, tenha a máscara da toga, para mostrar que não somente de tanques fora dos quartéis se pode derrubar, pôr por terra, regra constitucional imposta pela vontade do povo.
Aquele tribunal decidiu, por unanimidade, considerar procedente o recurso formulado pelo presidente boliviano, sob o argumento de que o disposto na Constituição e na Lei Eleitoral é inaplicável à pretensão do atual mandatário de concorrer novamente à Presidência da Bolívia, passando a prevalecer, de forma exclusiva, a vontade dele e não a do povo, que havia dito não, em referendo.
Os especialistas na área jurídica consideram que houve grosseiro malabarismo de interpretação jurídica para justificar a decisão favorável ao presidente, que poderá, graças ao golpe ao ordenamento jurídico, se candidatar normalmente, em desprezo à clareza do que estabelece a Constituição, que limita a possibilidade de eleição a dois mandatos, já usufruídos pelo atual presidente.
O golpe em comento nada mais é do que a repetição do que foi dado anos atrás, com também com sucesso, que permitiu que o atual presidente fosse reeleito, por força de absurda interpretação por tribunal dominado pelo mandatário do país.
Veja-se que o presidente está no poder desde 2006 e deveria ter se afastado dele ao fim de seu segundo mandato em 2015, mas, graças à mirabolante decisão do mesmo Tribunal, ele pôde disputar o terceiro mandato, sob o astuto argumento de que o país foi “refundado” em 2009, quando houve a promulgação da nova Constituição, evidentemente durante o governo do atual presidente, permitindo-se o movediço entendimento segundo o qual a contagem para a reeleição deveria ser feita não a partir do primeiro mandato, mas do primeiro exercido sob a égide da nova Constituição.
Ignorando a vontade do povo, manifestada em referendo e insatisfeito com apenas três mandatos, o presidente conseguiu convencer o Tribunal, composto por amigos, a reconhecer o direito dele de mais um, sob anômalo e esquisito entendimento de que o impedir de concorrer mais uma vez “seria limitar seus direitos políticos, o que violaria acordos internacionais assinados pela Bolívia. O principal seria o Pacto de San José, assinado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), que estabelece o direito dos cidadãos de elegerem e serem eleitos em consultas periódicas por voto universal e secreto.”.
Com base nesse esdrúxulo e frágil argumento, por sobrepor à vontade popular e ao regramento jurídico do país, pode-se intuir que o presidente boliviano tem direito a se reeleger tantas quantas vezes que quiser, ficando muito clara a forma escrachada da materialização do desrespeito ao ordenamento jurídico da Bolívia, o que foi entendido pelos líderes da oposição como verdadeiro golpe.
Na manifestação de um deles, que disse, em seguida à decisão do Tribunal Constitucional: “Evo Morales desconhece a própria Constituição, dá um golpe na vontade popular expressa no referendo de 2016 e mente reiteradamente para se manter no poder”, tendo acrescentado que os juízes agiram como “capangas a serviço de Evo”.
Outro líder da oposição classificou a decisão sobre o quarto mandato de ilegítima e disse que o presidente quer se “eternizar” no poder.
Em plena evolução da humanidade, não há a mínima justificativa para o golpe de Estado como esse desfechado na Bolívia, cujos mentores pretendem dar-lhe ares de “legalidade”, porém com base em fundamentos que contradizem os princípios jurídicos pátrios, quanto à autonomia, independência e vontade soberana da população, que não podem ser suplantadas por mera interpretação de magistrados tão somente voltadas para a satisfação de interesse e conveniência do mandatário do país, por descordar da saudável alternância do poder, depois de tê-lo conquistado e usufruído de suas benesses e influências.
No caso de confirmada a absurda e esdrúxula decisão em referência, por haver cristalina dissonância com os princípios jurídico, democrático e republicano, além do flagrante atropelo à vontade popular, que rejeitou novo mandato para o presidente, convém se esperar que os bolivianos tenham a dignidade que se espera deles de, na próxima eleição presidencial, demonstrar, nas urnas, a repetição do repúdio à insistência antidemocrática do mandatário da Bolívia, para mostrar-lhe que os princípios constitucionais da nação e a vontade do povo precisam ser fielmente respeitados, em harmonia com os salutares conceitos de civilidade e de valores humanos. Acorda, Brasil!
ANTONIO ADALMIR FERNANDES

Brasília, em 4 de dezembro de 2017

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