No
ano passado, houve referendo na Bolívia que decidiu rejeitar nova reeleição do
atual presidente do país, pondo ponto final nas esperanças dele de se perpetuar
no poder, como fazem normalmente os governos socialistas, que desprezam a
salutar alternância do poder.
Não
conformado com a vontade popular, o mandatário boliviano conseguiu estranha decisão
da lavra do Tribunal Constitucional daquele país, autorizando-o a disputar o
quarto mandato, em claro atropelamento à regra insculpida na Constituição, cuja
disposição referente a essa questão foi reforçada pelo resultado do aludido referendo.
Trata-se
de indiscutível demonstração de que está bastante ativa a repudiável tradição de
país líder e recordista de golpes de Estado, embora o último agora desferido, pelo
citado tribunal, tenha a máscara da toga, para mostrar que não somente de
tanques fora dos quartéis se pode derrubar, pôr por terra, regra constitucional
imposta pela vontade do povo.
Aquele
tribunal decidiu, por unanimidade, considerar procedente o recurso formulado
pelo presidente boliviano, sob o argumento de que o disposto na Constituição e na
Lei Eleitoral é inaplicável à pretensão do atual mandatário de concorrer
novamente à Presidência da Bolívia, passando a prevalecer, de forma exclusiva,
a vontade dele e não a do povo, que havia dito não, em referendo.
Os
especialistas na área jurídica consideram que houve grosseiro malabarismo de
interpretação jurídica para justificar a decisão favorável ao presidente, que
poderá, graças ao golpe ao ordenamento jurídico, se candidatar normalmente, em
desprezo à clareza do que estabelece a Constituição, que limita a possibilidade
de eleição a dois mandatos, já usufruídos pelo atual presidente.
O
golpe em comento nada mais é do que a repetição do que foi dado anos atrás, com
também com sucesso, que permitiu que o atual presidente fosse reeleito, por
força de absurda interpretação por tribunal dominado pelo mandatário do país.
Veja-se
que o presidente está no poder desde 2006 e deveria ter se afastado dele ao fim
de seu segundo mandato em 2015, mas, graças à mirabolante decisão do mesmo
Tribunal, ele pôde disputar o terceiro mandato, sob o astuto argumento de que o
país foi “refundado” em 2009, quando
houve a promulgação da nova Constituição, evidentemente durante o governo do
atual presidente, permitindo-se o movediço entendimento segundo o qual a
contagem para a reeleição deveria ser feita não a partir do primeiro mandato,
mas do primeiro exercido sob a égide da nova Constituição.
Ignorando
a vontade do povo, manifestada em referendo e insatisfeito com apenas três mandatos,
o presidente conseguiu convencer o Tribunal, composto por amigos, a reconhecer
o direito dele de mais um, sob anômalo e esquisito entendimento de que o impedir
de concorrer mais uma vez “seria limitar
seus direitos políticos, o que violaria acordos internacionais assinados pela
Bolívia. O principal seria o Pacto de San José, assinado no âmbito da
Organização dos Estados Americanos (OEA), que estabelece o direito dos cidadãos
de elegerem e serem eleitos em consultas periódicas por voto universal e secreto.”.
Com
base nesse esdrúxulo e frágil argumento, por sobrepor à vontade popular e ao
regramento jurídico do país, pode-se intuir que o presidente boliviano tem
direito a se reeleger tantas quantas vezes que quiser, ficando muito clara a
forma escrachada da materialização do desrespeito ao ordenamento jurídico da
Bolívia, o que foi entendido pelos líderes da oposição como verdadeiro golpe.
Na
manifestação de um deles, que disse, em seguida à decisão do Tribunal
Constitucional: “Evo Morales desconhece a
própria Constituição, dá um golpe na vontade popular expressa no referendo de
2016 e mente reiteradamente para se manter no poder”, tendo acrescentado
que os juízes agiram como “capangas a
serviço de Evo”.
Outro
líder da oposição classificou a decisão sobre o quarto mandato de ilegítima e
disse que o presidente quer se “eternizar”
no poder.
Em
plena evolução da humanidade, não há a mínima justificativa para o golpe de
Estado como esse desfechado na Bolívia, cujos mentores pretendem dar-lhe ares de
“legalidade”, porém com base em fundamentos que contradizem os princípios
jurídicos pátrios, quanto à autonomia, independência e vontade soberana da
população, que não podem ser suplantadas por mera interpretação de magistrados
tão somente voltadas para a satisfação de interesse e conveniência do
mandatário do país, por descordar da saudável alternância do poder, depois de
tê-lo conquistado e usufruído de suas benesses e influências.
No
caso de confirmada a absurda e esdrúxula decisão em referência, por haver cristalina
dissonância com os princípios jurídico, democrático e republicano, além do
flagrante atropelo à vontade popular, que rejeitou novo mandato para o
presidente, convém se esperar que os bolivianos tenham a dignidade que se
espera deles de, na próxima eleição presidencial, demonstrar, nas urnas, a
repetição do repúdio à insistência antidemocrática do mandatário da Bolívia,
para mostrar-lhe que os princípios constitucionais da nação e a vontade do povo
precisam ser fielmente respeitados, em harmonia com os salutares conceitos de
civilidade e de valores humanos. Acorda, Brasil!
ANTONIO ADALMIR FERNANDES
Brasília, em 4 de dezembro de 2017
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