quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Irracionalidade?

           Vem circulando, nas redes sociais, vídeo em que o presidente da República faz inflamado discurso, cujo cerne objetiva atacar, com veemência, decisões do Supremo Tribunal Federal, em especial, no sentido de mostrar que muitos ministros abusam do seu poder e adotam medidas inconstitucionais.

Eis excerto do aludido discurso, ipsis litteris:Eu fui do tempo de que decisão do Supremo não se discute, se cumpre. Eu fui desse tempo. Não sou mais. Certas medidas saltam aos olhos dos leigos. É inacreditável o que fazem. Querem prejudicar a mim e prejudicam o Brasil. Eu tenho a obrigação de agir. Tenho jogado dentro das quatro linhas. Não acho uma só palavra minha, um só gesto, um só ato fora da Constituição. Será que três do Supremo Tribunal Federal, que podem muito, podem continuar achando que podem tudo? Eu não vou viver como rato. Tem que haver uma reação. E se a população achar que não deve ser dessa maneira, prepare-se para ser prisioneiro, sem algemas (...)”.

É simplesmente inacreditável que o presidente da República tenha chegado ao extremo do absurdo na gestão pública, em afirmar que não vai mais cumprir decisão do Supremo.  

Quando o presidente do país diz que foi do tempo em que se cumpria as decisões do Supremo, sem discutir, e que agora não vai mais cumpri-las, ele automaticamente pode incorrer no crime de responsabilidade, por claro desrespeito ao ordenamento jurídico-constitucional, porque as decisões judiciais têm força de lei.

É preciso se compreender que as decisões judiciais são passíveis sim de discussão, na forma de recursos, com sede nos ditames constitucionais da ampla defesa e do contraditório, justamente para se permitir o esclarecimento do objeto julgado e as possíveis contra-argumentações sob o amparo da justiça e da regularidade, como forma de se aquilatar a verdade sobre os fatos querelados.

Isso que o presidente do país afirmou é clássica declaração de desrespeito, sem justa causa, de ato de rebeldia que não se compadece com a cartilha inerente ao relevante cargo exercido por ele, podendo constituir verdadeiro tiro não no pé dele, mas no seu próprio coração, porque ele sai completamente da linha da legitimidade institucional, para se insurgir, sem amparo legal, contra o que ele entende que seja ato errado que prejudica o Brasil, por via da pessoa dele.

Acontece que, por mais erradas que estejam as decisões e os atos dos ministros do Supremo, isso jamais e em momento algum tem o condão de autorizar que ele possa deliberar por também extrapolar os parâmetros da constitucionalidade.

Ou seja, o presidente do país chega à mesquinha conclusão de que, se os juízes do Supremo podem praticar abusos contra a Constituição, isso é o mesmo que possibilitar que ele também possa incorrer em erro ainda mais grave, que é desrespeitar decisão do Supremo, dando a entender que um erro justifica a prática de outro, em sentido contrário, quando tudo isso cinge-se ao campo da insensatez e da irracionalidade administrativas.

A propósito, no caso específico do presidente do país, convém que seja mencionado o disposto no art. 78 da Constituição Federal, quando ela estabelece, com muita clareza, verbis: “O Presidente e o Vice-Presidente da República tomarão posse em sessão do Congresso Nacional, prestando compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.”.

Isso vale dizer que o presidente do Brasil precisa respeitar e cumprir as leis do país, além de ele precisar servir como modelo de civilidade, que implica se afirmar que ele pode não concordar com as decisões judiciais, porque isso é possível em não se conformar com medidas impositivas, mas jamais ignorá-las.

Não obstante, na forma da Constituição, tanto ele como os demais brasileiros têm o sagrado direito de recorrer das decisões judiciais, na via legal, para mostrar, se for caso, a violação do direito e a necessidade da reparação do seu conteúdo.

O que consta no disposto acima proíbe que o presidente do país se recuse ao cumprimento de decisão judicial, porque, do contrário, como assim ele disse que não mais a cumprirá, conforme ficou claro no seu discurso, ele poderá ser obrigado a responder pelo crime de responsabilidade, ex-vi do disposto no inciso VII do art. 85 da Carta Magna, que diz o seguinte: “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.”.

Como se pode interpretar, facilmente, da leitura dos textos constitucionais acima, mesmo que o presidente do país não esteja gostando nem um pouco dos atos e decisões de ministros do Supremo, ele tem duas alternativas, quais sejam, recorrer delas ou criar norma jurídica que possa enquadrar, tipificando, os casos em que esses magistrados incorrem em desvio funcional passível de questionamento e sanção, tudo devidamente sacramentado pelo beneplácito do Congresso Nacional.

Isso é exatamente o que normalmente acontece nos países sérios, evoluídos e civilizados, em termos democráticos, em que as lideranças políticas são conscientizadas sobre a imperiosa necessidade  do permanente aperfeiçoamento dos princípios políticos.

O que não pode é o presidente do país ficar estrebuchando, em público, sem o mínimo de razoabilidade nem justificativa, exatamente por falta de motivação para tanto, de modo a se criticar os possíveis abusos de ministros do Supremo, porque isso não condiz com a liturgia do relevante cargo ocupado por ele, que exige sabedoria e competência para lidar, com naturalidade, com essas questões adversas, vindas de onde vierem, porque os seus protagonistas têm plena consciência do que estão fazendo, precisamente para a criação de instabilidade no seio de seus inimigos ou desafetos políticos, com vistas à consecução da desestabilização democrática.

Urge que o presidente da República se concentre exclusivamente no fiel cumprimento das suas funções institucionais, estritamente adotando as medidas inerentes ao cargo que exerce, inclusive buscando, se for o caso, a aprovação de normas constitucionais capazes de pôr limites aos desvios funcionais, no exercício de cargos públicos, evitando a reiterada demonstração de incompetência, por meio de ameaças inúteis e nunca cumpridas, o que somente contribui para aumentar o descrédito no governo.       

          Brasília, em 17 de agosto de 2022

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