quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O veto unilateral de julgamentos

O principal órgão do Poder Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, entrou de recesso, no final de 2017, tendo deixado de concluir 50 julgamentos iniciados no plenário, que foram interrompidos pelos chamados “pedidos de vista”, que são previstos no seu Regimento Interno.
Já se tornaram comuns, na rotina dos tribunais, os pedidos de vista que são formulados durante a sessão, por algum dos magistrados, basicamente sob a alegação da necessidade de mais tempo para estudar o assunto, elaborar o voto que irá proferir e levar o caso a julgamento em data futura, em geral indefinida, que normalmente depende do atendimento à conveniência sobre a indefinição da matéria, que já até pode estar com maioria de votos e liquidada, mas a interrupção paralisa tudo.
Dos casos paralisados em 2017, a maioria (38) até foram devolvidos à presidência da Corte, com o voto pronto do ministro que pediu vista, mas a retomada do seu julgamento não pôde ser realizada porque os processos precisam ser agendados novamente, cabendo à presidente do Supremo agendá-los na já apertada pauta do plenário.
No total dos pedidos de vista, há exatamente 216 processos que estão à espera de julgamento no Supremo, sendo que eles representam pouco mais que 0,4% do total de 45,5 mil processos em tramitação no tribunal.
Existe um pedido de vista que foi feito em 2001, que se encontra à espera de verdadeiro milagre para ser julgado e definida a matéria.
As regras do Supremo permitem ao ministro pedir “vista” do processo, durante o julgamento – o termo decorre do tempo em que inexistiam cópias digitalizadas do processo, e assim a consulta aos autos só se fazia nos volumes, em papel, que ficavam transitando fisicamente entre os gabinetes.
O Regimento Interno do Supremo estabelece que, após o pedido de vista, o ministro deve apresentar o voto até a segunda sessão seguinte, mas essa norma foi modificada, para permitir que o ministro possa elaborar o voto em até 20 dias, sem que haja qualquer consequência em caso da inobservância desse prazo nem no adiamento por tempo indefinido do julgamento, salvo com relação aos interessados que devem ficar injuriados quando a matéria do seu interesse é praticamente engavetada, porque o ministro houve por bem fazer uso da sua prerrogativa, sabe-se lá por qual motivo.
Diante da constatação de abusos, nesse particular, o Conselho Nacional de Justiça, muito prudencialmente, resolveu aprovar, em 2013, regra mais rigorosa e consentânea com a dinâmica processual – não aplicável ao STF –, que estabelece que, nos demais tribunais, os juízes têm 20 dias para devolver o processo, no caso de pedido de vista, mas, havendo o descumprimento desse prazo, sem justificativa, o caso é automaticamente incluído na pauta da sessão seguinte, após o vencimento dele.
Trata-se de regra de meridiana inteligência, para se evitar que o processo demore a ser julgado, mas essa salutar e evoluída lição não pode ser empregada pelo Supremo, mostrando exatamente brutal incoerência, porque, sendo o principal órgão do Poder Judiciário, ele precisa, em termos do aprimoramento processual, dar o exemplo para ser seguido pelos demais tribunais, não permitindo, como vem acontecendo, que os pedidos de vista se transformem em verdadeira manobra protelatória, para, possivelmente, satisfazer interesses inconfessáveis.
Um professor e pesquisador de direito da Fundação Getúlio Vargas disse que não deveria existir pedido de vista, por se tratar de “uma jabuticaba que tem vários aspectos negativos e nenhum positivo. São usados como estratégia para vetar unilateralmente os julgamentos".
Ele sustenta que, atualmente, cabe ao Supremo decidir sobre questões de grande impacto, a exemplo da discussão acerca do foro privilegiado para políticos – parada em novembro –, que, segundo ele, “impacta diretamente no combate à corrupção”.
          O professor lembrou o caso da proibição da doação para financiamentos de campanhas eleitorais, por empresas, em que a ação chegou ao tribunal em 2011, começou a ser julgada em 2013, mas foi concluída só em 2015, por causa de dois pedidos de vista, tendo concluído que “As eleições de 2014 poderiam ter outro rumo”.
É engraçado que os responsáveis pelos pedidos de vista, que paralisaram os dois casos supracitados, alegaram, como justificativa, em ambas as ocasiões, que interromperam o julgamento para dar ao Congresso Nacional a chance de decidir sobre a questão, que afetam diretamente a política, ou seja, no fundo, a verdadeira motivação não passa de escrachada e grosseira embromação.
O ministro que fez o pedido de vista acima disse que “O simples fato de ter colocado esse tema em debate fez com que o próprio Congresso Nacional fosse instado a deliberar sobre ele”, mas o simples adiamento, no Supremo, fez arrefecer o assunto também no Parlamento e a questão não se define em nenhum dos poderes, em prejuízo para a dinâmica processual e o combate à imoralidade e à corrupção, haja vista que matéria de suma importância deixa de ser resolvida com menos demora, em razão de capricho pessoal de ministro, que deixa de pensar no país e cuida de assuntos paroquiais.  
Um ex-ministro do Supremo disse que “O pedido de vista é muito importante quando existe uma dúvida. Agora, quando a questão já está longamente debatida significa atrasar o julgamento, com prejuízo para o jurisdicionado, e para o próprio STF. Muitas vezes o juiz traz um voto mais extenso, com outras considerações, mas desnecessárias. O jurisdicionado quer solução para o seu caso”.
Outro ministro do Supremo afirmou “O ministro que não é o relator, ao ouvir o relatório no plenário e na coleta de cada voto, pode realmente dizer que não está em condições de votar, cognitivamente não domina o assunto com a consistência, profundidade, clareza que possibilite um conforto intelectual”.
No caso do Supremo, que tem sobrecarga de processos, na casa dos milhares, à espera de julgamento, caracteriza verdadeiro crime quando o ministro faz pedido de vista, às vezes visivelmente sem justificativa plausível, porque isso nada mais é do que atrasar deliberadamente o julgamento e contribuir para emperrar ainda mais a pauta, a exemplo da devolução de 38 processos à presidência que ultrapassaram o ano na fila, justamente por falta de espaço na agenda.
Na forma como o instrumento pedido de vista é empregado no Supremo, em que a devolução fica sob o arbítrio do ministro, não prevalece, não se justifica nem mesmo nas republiquetas mais atrasadas, que já evoluíram, nesse particular, por entenderem que se trata de anomalia não mais aceitável na modernidade que precisa primar na atualidade.
Não resta a menor dúvida de que o instituto do pedido de vista tem por finalidade o aperfeiçoamento do trabalho dos tribunais, mas o seu uso, principalmente no Supremo, infelizmente, foi transformado em símbolo de manobra, quase sempre injustificável, por meio da qual o ministro, com a maior cara de pau, finge que desconhece a matéria e alega que precisa de mais tempo para se inteirar dos fatos constantes dos autos ou simplesmente inventa outra desculpa esfarrapada e igualmente absurda, eis que ele conhece o assunto de que se trata bem melhor até mesmo do que o próprio relator, mas mesmo assim ainda pede vista.
Com isso, o ministro satisfaz o seu desejo de interromper o julgamento ou atende algum interesse contrariado, com o adiamento da decisão para quando a sua vontade bem entender, ficando os interessados esperando até um dia do seu benquerer e quando achar que já se inteirou da matéria e decide devolver o processo exatamente com o voto que já tinha desde o momento que pediu vista.
Trata-se de indiscutível desserviço à dinâmica do Supremo, que é obrigado a agendar novamente o processo que já deveria ter sido resolvido quando houve o pedido vista, ficando patenteada a atitude bastante prejudicial à dinâmica processual, por necessário novo agendamento do mesmo processo, quantas vezes que ele for pedido vista.
Conviria, como alternativa moralizadora, que o ato de pedido de vista não fosse impositivo pela simples vontade do ministro, mas sim que o pedido em si fosse decidido pelos demais ministros, dizendo se concorda ou não com ele.
Os ministros do egrégio Supremo Tribunal Federal poderiam ter a sensatez e a humildade de adotar a regra prudencial e moralizadora aprovada pelo colendo Conselho Nacional de Justiça, de se incluir o caso na sessão seguinte, quando for vencido o prazo, sem que o processo tenha sido devolvido, como forma de mostrar o real sentido de se evitar procrastinação proposital, sem a menor razoabilidade, e principalmente prejuízos ao interesse público, porque não se justifica que matéria importante, assim reconhecida por aqueles que já votaram, fique paralisada por vontade de único ministro, que nem sempre tem a sinceridade e a dignidade de declinar o real motivo do seu pedido de vista, que sempre fica explícita a existência de motivação muito mais de outrem do que de interesse nacional ou sociedade. Acorda, Brasil!
ANTONIO ADALMIR FERNANDES

Brasília, em 4 de janeiro de 2018

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